Eleição presidencial dos EUA fica marcada por mudanças demográficas e erros nas pesquisas

Autor: Arthur Salles - Estagiário de Jornalismo

A vitória de Joe Biden nas eleições dos Estados Unidos provocou uma série de reflexões sobre as mudanças do eleitorado norte-americano. Estados historicamente republicanos mudaram de lado neste ano. Nem mesmo as pesquisas de intenção de voto, já criticadas no último pleito por indicarem uma vitória tranquila de Hillary Clinton sobre Donald Trump, foram capazes de captar a tensão da população. O republicano, embora derrotado, foi novamente subestimado pela imprensa internacional e pelos institutos de pesquisa.

O curso de Ciência Política da Uninter recebeu o pesquisador da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Márcio Carlomagno para identificar os aspectos da disputa eleitoral em alguns estados-chave. A conversa foi mediada pelos professores Luiz Domingos Costa e André Ziegmann, com transmissão pela página do Facebook em 5.nov.20.

Com recorde de participação em um sistema de votação facultativa, a eleição presidencial deste ano teve a maior aderência em 120 anos. Cerca de 160 milhões de pessoas encaminharam seus votos às urnas, de modo presencial ou pelo correio. A chapa Joe Biden-Kamala Harris também foi a mais votada da história: 79,8 milhões, contra os 73,8 milhões de Donald Trump-Mike Pence.

Apesar da diferença popular, a definição do presidente fica por conta dos votos do colégio eleitoral de cada estado (para saber mais sobre esse sistema, clique aqui). Os partidos Democrata e Republicano apostavam na vitória em algumas regiões específicas, mas a polarização política e a mudança de perfil dos eleitores contrariaram certas expectativas.

Ziegmann acredita que pessoas de origem latina vêm acirrando a disputa presidencial ao longo dos anos. Entre 2010 e 2020, essa população passou de 50,5 milhões para 60,5 milhões nos Estados Unidos. “De fato essa mudança demográfica já está produzindo impacto eleitoral”, comenta. A projeção era de que 32 milhões de latinos (13,3% do total de eleitores) estavam aptos este ano à votação no país todo.

O primeiro e talvez mais emblemático caso é o do Arizona. O estado elege candidatos republicanos desde 1952, com exceção de Bill Clinton, em 1996. Carlomagno enxerga a inclinação pró-Biden da região neste ano por questões de mudanças demográficas dos grandes centros urbanos, como uma população mais jovem e etnicamente diversa.

O território agrega hoje uma comunidade hispânica de cerca de 2,3 milhões de pessoas, equivalente a um terço de todo o estado. Na estimativa do centro de Políticas Latinas e Iniciativa Política da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), os votantes latinos do Arizona aumentaram 5% desde 2016, chegando a 24,6% (1,2 milhão) do eleitorado do estado neste ano.

Carlomagno aponta ainda para outro fator: o desprezo de Trump por John McCain, senador republicano do Arizona por mais de 30 anos. Veterano da Guerra do Vietnã, McCain era opositor de Trump dentro do mesmo partido. Os embates começaram nas eleições primárias de 2016, quando o senador considerara “perigosas” as falas de Trump sobre segurança nacional. Desde então, o presidente fez de McCain um constante alvo de ataques e insultos.

“Essa rixa pessoal do Trump com um ídolo estadual pode ter gerado o afastamento do eleitor típico do Arizona”, avalia o cientista político. Biden assegurou a conquista do estado por uma diferença de 11 mil votos (uma margem de 0,3%).

O Texas, tradicionalmente republicano, é outro local que apresenta um movimento populacional semelhante. Mesmo com margem favorável a Trump em 5,8% dos votos, há mais de 20 anos o estado apresenta diferenças maiores contra os democratas.

O estado do Texas teve um aumento da população hispânica em 2 milhões entre 2010 e 2020, segundo o Departamento do Censo dos EUA. A estimativa é de que a etnia ocupe quase 40% da região, com presença maciça nas maiores metrópoles. Nas urnas, a projeção de votantes hispânicos é de 5,6 milhões, o segundo maior eleitorado latino do país.

O último democrata a vencer na Geórgia foi Bill Clinton, em 1992. Ziegmann enxerga a virada de Biden na região como uma retomada dos valores democráticos que pautam os movimentos sociais no estado desde a década de 1960, como a reinvindicação de direitos civis dos negros.

A Geórgia conta hoje com um eleitor abaixo dos 35 anos para cada três votantes. O número foi especialmente notado após as eleições de 2016, com um aumento de 68% desde então.

A população negra do estado também constitui um terço do eleitorado. Cerca de 10% da população da Geórgia é imigrante, sendo o estado com o crescimento mais rápido de votantes nascidos em outros países. Outra taxa a ser observada é a queda do número de eleitores brancos: até 2016 correspondiam a 62% do eleitorado, caindo para 59% neste ano.

Mais um fator apontado pelos especialistas é a diferença dos votantes do interior dos estados com os que ocupam as regiões metropolitanas. Dos 25 estados onde Trump saiu vitorioso, Biden conquistou os maiores centros urbanos em 17 deles, até mesmo em locais reconhecidamente republicanos, como Alabama e Arkansas. Nos 25 territórios restantes, os condados de cada estado foram favoráveis ao democrata.

“Em praticamente todos os estados, a grande divisão da política americana hoje é entre centros urbanos, que tendem a ser democratas, e o interior e centros rurais, que tendem a ser republicanos”, complementa Carlomagno.

A maior incidência da Covid-19 também pode ser compreendida como um aspecto negativo para Trump nas metrópoles. Uma análise publicada em setembro pela emissora National Public Radio constatou que o vírus atingiu as grandes cidades norte-americanas por mais tempo desde o início da pandemia. Municípios menores e regiões rurais tiveram um crescimento quase que contínuo desde março, mas passaram a concentrar juntos o maior número de casos a partir de setembro, próximo às eleições. A doença contabiliza hoje mais de 265 mil mortes e 12 milhões de casos no país.

Em termos econômicos, a gestão do republicano desde 2017 vinha alcançando bons indicadores. O desemprego, que estava em queda desde a posse de Barack Obama em 2009, chegou ao menor índice histórico em 50 anos: 3,5% em setembro do ano passado. A chegada da pandemia levou a taxa a outro extremo: 14,7% em abril deste ano, o maior número de desempregados já registrado. Em queda desde então, a população desempregada passou para 6,9% em outubro, de acordo com o Departamento do Trabalho dos Estados Unidos.

O PIB (Produto Interno Bruto) também foi um indicativo favorável para a gestão do republicano. A economia do país cresceu em média 2,5% nos últimos três anos. O número acompanhou a retomada de crescimento dos dois mandatos de Obama após a crise financeira de 2008 e foi superior à maioria das taxas das maiores economias do mundo, com exceção de Índia e China. A previsão do banco central americano é que o PIB caia 2,5% neste ano em comparação a 2019.

“Eu acho que se ele [Trump] tivesse tratado de outra forma a pandemia e a questão racial, ele venceria a eleição. Se não tivesse a pandemia, acho que ele chegaria quase imbatível por causa da questão econômica”, crê Ziegmann.

Essas distribuições são semelhantes em outros locais, mas sem seguir necessariamente a mesma tendência democrata. Trump conquistou a Flórida com cerca de 400 mil votos de vantagem, contando justamente com a porção hispânica do estado. O discurso de segurança e crescimento econômico dos anos anteriores foi fundamental para a conquista do eleitorado, que via em Biden uma possível figura socialista, como pintavam seus opositores.

“Essa é uma das grandes habilidades da campanha republicana na Flórida, neste ano”, diz Costa sobre o apoio de cubanos e venezuelanos a Trump. Uma pesquisa da NBC aponta que 55% dos votos cubanos foram ao republicano; o mesmo suporte foi apurado em 30% de eleitores porto-riquenhos e em 48% de “outros latinos”.

Cerca de 2,5 milhões de latinos floridenses estavam aptos a votar no pleito. O número equivale a 17% do eleitorado do estado. A análise é do instituto Pew Research, baseado em dados do Departamento de Estado da Flórida.

Em comparação à votação de Hillary em 2016, o condado de Miami-Dade (o maior do estado) teve um decréscimo de 23% para Biden. O democrata conquistou o condado, mas com margem menor e um tanto representativa para a vitória geral de Trump no estado. O republicano aumentou a diferença em 2% desde 2016, quando saiu vitorioso da Flórida com 49,1% dos votos válidos.

A região viu Trump começar a mobilização para a campanha em julho, enquanto Biden fez sua primeira visita à região como candidato em setembro. Apesar da falta de intensidade democrata no estado, as pesquisas apostavam no apelo da figura de Harris para manter a maior parte desse eleitorado fiel ao partido. Até 1º de novembro, a contagem de pesquisas agregadas do portal FiveThirtyEight projetava uma vantagem de dois pontos percentuais ao democrata. O resultado foi a liderança de Trump por 3,3% no estado.

Carlomagno avalia que o grande derrotado deste ano foram os institutos de pesquisa. Para ele, eleitores com maior identificação democrata tendem a responder mais às enquetes. Uma parcela dos apoiadores de Trump prefere não se manifestar, seja em público ou nesses levantamentos, caracterizada como “eleitores envergonhados”. “Por isso que as pesquisas não conseguiram captar isso que aconteceu na Flórida e certamente é uma das grandes surpresas dessa eleição”, considera o politólogo.

A última combinação de pesquisas realizadas antes da eleição registrou uma vantagem de Biden em 8,4% a nível nacional. Com as votações apuradas, a margem diminuiu para 3,8%. Os professores acreditam que o sistema eleitoral próprio dos Estados Unidos é o que dificulta uma amostragem mais precisa. O voto facultativo, a possibilidade de uso do serviço postal e as tendências debatidas acima são alguns dos percalços para esses institutos.

A pesquisa que mais se aproximou da contagem final foi a do instituto Ipsos, publicada no dia anterior ao pleito: 52% para Biden e 45% para Trump, mas ainda com quase o dobro da vantagem real do democrata.

À véspera do segundo turno da última eleição presidencial no Brasil, por exemplo, o Datafolha verificou que o então candidato e hoje presidente Jair Bolsonaro estava com 55% das intenções de voto, dez pontos à frente do adversário Fernando Haddad. Com todas as seções apuradas no dia seguinte, o resultado manteve-se o mesmo: 55,13% a 44,87%.

“Desse ponto de vista específico, as pesquisas no Brasil são um pouco mais confiáveis”, finaliza Carlomagno.

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Autor: Arthur Salles - Estagiário de Jornalismo
Edição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: U.S. Embassy Jerusalem/Creative Commons


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