Coragem, a arma de Gisiane contra a tirania da contingência, o câncer e a ignorância

Autor: Kethlyn Saibert - Estagiária de Jornalismo

A quem cabe a sorte ou o azar na loteria do acaso? O escritor Philip Roth chamou de “tirania da contingência” o vazio acidental que impõe a alguém uma vida de desgraças ou de normalidade. A alguns o fardo é maior. Mas, qual a carga de tragédias que alguém é capaz de suportar? Esta é a história de perseverança e coragem de uma jovem mulher que venceu um câncer no cérebro e agora luta contra outro no ovário. Sua batalha, no entanto, é contra um mal maior: a ignorância.

Desde que ingressou no curso de licenciatura em Letras da Uninter, Gisiane da Silva Leal, 26 anos, passou por uma série de adversidades que quase a impediram de seguir o sonho nutrido desde a infância. Entre o julgamento dos outros, a depressão e a descoberta de um câncer, os obstáculos foram se multiplicando ao mesmo tempo em que eram vencidos por uma vontade que parecia não ter fim. Gisiane queria ser professora.

Desde criança, sonhava com quadros verdes e carteiras enfileiradas. A brincadeira favorita com os amigos era dar aulas em uma sala de aula que ela mesmo organizou, num centro comunitário em frente da casa da avó. Ela mora na área rural de Maria Santa (RS), região onde há somente escolas de ensino fundamental, e para fazer o ensino médio os moradores precisam se deslocar até Encruzadilha do Sul, um percurso de mais de 3 horas por causa das condições das estradas de chão. Por isso, os estudos sempre foram difíceis para ela, e seu sonho de fazer faculdade parecia algo distante.

Apesar das dificuldades, Gisiane sempre teve apreço pelo estudos e amor pelos livros. Estudar sempre foi uma das suas atividades favoritas. Porém, quando ela estava com quase 15 anos, descobriu que estava grávida. “Foi um choque para mim. Tive que interromper meus estudos”, lembra.

Ela se casou e passou a se dedicar aos cuidados do lar e do filho, Gabriel. Seguiu assim por 3 anos. Não contente com os rumos tomados na vida, Gisiane acabou entrando em depressão profunda. “Tentei tirar a minha vida por três vezes, mas minha mãe e meu marido me ajudaram, e eu iniciei um tratamento para depressão em Porto Alegre”, recorda.

Em 2013, surgiu uma oportunidade que mudaria tudo: a cidade de Maria Santa ganhou um transporte escolar que levava os moradores da área rural para estudar em Encruzadilha do Sul. “Aí pensei: Ah, é agora que volto a estudar”, diz. O pai e o marido não foram receptivos com a ideia, já que não havia ninguém que pudesse cuidar de Gabriel enquanto ela estava ausente.

Mas Gisiane já estava decidida, voltou a estudar e resolveu levar a criança junto. Como sempre quis ser professora, escolheu fazer magistério, curso de nível médio. “A gente saía todos os dias às 05h30 da manhã. Eu deixava ele numa creche e eu ia para a escola, onde fazia magistério. Então, todos os dias nós saíamos de casa cedo para chegar lá faltando 15 minutos para as 8h. Chegando em casa, ainda tinha a dupla jornada com os afazeres domésticos: almoço, cuidados com meu filho e depois a janta. E às vezes eu ia até às 2 horas da manhã, porque era o único tempo que eu tinha para estudar. E às 4h30 já estava de pé novamente para arrumar o Gabriel e pegar a condução”, conta.

Faculdade e novas dificuldades

Foram 3 anos e meio de rotina corrida e agitada até Gisiane se formar no magistério. Sem dúvidas, foi uma grande conquista, porém ela almejava dar um passo além, então decidiu fazer uma graduação. A decisão, no entanto, encontrou mais um obstáculo. “Meu marido achava que eu não precisava mais estudar, e nós não tínhamos dinheiro. Então comecei a trabalhar de doméstica para pagar a faculdade”, recorda.

Assim, Gisiane deu início ao curso de licenciatura em Letras. Ela conheceu o polo de apoio a distância da Uninter em Santa Cruz do Sul (RS), que fica a 145km de sua cidade. O modelo de ensino EAD ajudou a conciliar a vida agitada de trabalho e a maternidade. “Eu trabalhava três vezes na semana e ia uma vez por semana ao polo de Santa Cruz”, conta.

Em apenas um ano de curso, Gisiane conquistou uma vaga na área que tanto sonhava. “Recebi o convite de um amigo para trabalhar como estagiária em uma escola de ensino fundamental que fica perto da minha casa, aqui no interior. Meu sonho começava a se realizar”, lembra.

No entanto, como a vida é uma peça de teatro que não permite ensaios, Gisiane foi surpreendida pela tirania da contingência. Do dia para a noite, ela começou a ter fortes dores de cabeça, cada vez mais frequentes, até progredirem para desmaios e convulsões. “De início pensei que era só cansaço, mas os sintomas foram piorando. No hospital, os médicos me ‘tratavam’ para os nervos e depressão. Até que um dia resolvi consultar um neurologista que desconfiou dos meus sintomas e pediu exames e mais exames. Quando peguei o resultado, descobri que estava com um tumor no cérebro”, relata.

A aluna conta que ficou arrasada e que naquele momento só conseguia pensar em seu filho: “Chorei sem parar e só me vinha na cabeça o medo de morrer e perder meu filho. Mas arranjei forças por ele e disse: eu vou lutar e vou vencer até o último dia”, conta. Então, erguendo-se pelo seu amor de mãe, ela imediatamente iniciou o tratamento com quimioterapia.

Apesar de todas as dificuldades, Gisiane continuou seguindo com os estudos e o estágio. Ela conta que houve momentos em que achava que não iria conseguir, e destaca que o apoio da família e da equipe do polo de Santa Cruz do Sul foram essenciais nesse período conturbado.

As ordens médicas eram para que Gisiane parasse com a faculdade, mas ela explica que se não fosse pelos estudos e o trabalho, ela teria lidado pior com a situação. “Se não fosse pelo meu serviço e a faculdade, acho que eu tinha entrado em depressão novamente, teria sido bem pior. Estudando e apresentando trabalhos era onde eu me distraía. Era uma coisa boa, sabe? Uma coisa que eu gostava de fazer”.

Foram dois anos de quimioterapia. Por causa das medicações fortes que tomava, Gisiane chegou a desmaiar diversas vezes, inclusive quando apresentava trabalhos acadêmicos. Ela ressalta que a coordenadora pedagógica do polo, Mônica Eliza Malacarne, e sua professora orientadora, Stela Picin, sempre ajudaram nesses momentos. “Uma vez eu estava no polo da Uninter quando me deu uma convulsão e acabei desmaiando. Mas minhas queridas orientadoras Mônica e Stela me levaram para o hospital de Santa Cruz”, conta.

“Embora sua cidade fosse distante, Gisiane esteve presente nas atividades presenciais como apresentações de portfólio e estudo de caso. Muito dedicada, organizada e generosa. Isso prova que quando se quer realizar um sonho, sempre é possível”, destaca Mônica.

Uma vitória, mais um desafio

Depois de dois anos de quimioterapia, Gisiane enfim superou o câncer no cérebro e caminha para a reta final da faculdade. Porém, como a vida é um mar de incertezas, onde a maré é ora baixa, ora alta, a estudante se deparou com mais uma surpresa: no final de 2019 descobriu que está com câncer nos ovários. “Quando eu já estava quase terminando o tratamento do tumor, descobri que estava com outro, nos ovários. Superei um tumor, agora estou em tratamento de outro. Mas, graças a Deus, em vista do que estava antes, estou melhor agora”, declara.

Mesmo com todos os obstáculos, Gisiane continua persistente, em tratamento e terminando seu trabalho de conclusão de curso (TCC). Atualmente, também está trabalhando como professora do ensino fundamental. A meta agora é “encerrar uma fase para começar uma nova”. Assim que terminar a faculdade, ela quer fazer uma pós-graduação em Educação Especial na Uninter.

“No momento que pegar o diploma, já quero seguir fazendo uma pós. Não quero perder mais tempo. Farei novamente com a Uninter, porque me identifiquei. E também gosto muito da coordenadora. Ela é uma pessoa muito querida e muito humana que esteve sempre me apoiando. Muitas vezes eu passava mal, e ela sempre me ajudou muito. É uma pessoa muito especial mesmo”, conclui.

Gisiane é o exemplo que para viver um sonho é necessário ter coragem, pois a vida é uma longa caminhada cheia de obstáculos. Sua jornada relembra o poema de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

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Autor: Kethlyn Saibert - Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: Arquivo pessoal


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