A magia da literatura me fez conhecer os sentimentos de duas irmãs quilombolas

Autor: Jeferson Ferro - professor da Uninter

Seres humanos são animais que precisam contar e ouvir histórias. Narrar foi uma habilidade tão essencial ao desenvolvimento de nossa espécie quanto a de dominar o fogo ou construir ferramentas. Ela é, em essência, um instrumento para a sobrevivência das comunidades: através das narrativas que elaboramos sobre os fatos marcantes de nossa existência, definimos nossas identidades como indivíduos e, por consequência, nossas afinidades tribais. Esse poder de união também vale para os sonhos e desejos que compartilhamos – como o de exterminar políticos corruptos, por exemplo. Se pertencemos a um grupo – uma nação, um partido político, uma torcida de futebol – é porque compartilhamos narrativas com os demais integrantes.

Mas há um outro efeito primordial para a socialização humana que está na própria essência da narrativa. Se por um lado ela nos une em grupos que apresentam afinidades em comum, por outro ela é capaz de nos oferecer uma janela para o mundo que está além de nosso horizonte. Ou seja, por meio de narrativas nos tornamos capazes de vislumbrar mundos e existências que estão além de nossa realidade imediata.

Assim como as formas de se fazer fogo evoluíram bastante ao longo do tempo, as de narrar também. Fomos da literatura oral, do poema épico que cantava os feitos dos heróis do passado, como nos clássicos gregos Odisseia e Ilíada, ao teatro e à prosa literária moderna. Hoje vivemos imersos num oceano de múltiplos formatos e plataformas usadas para se contar histórias: dos stories do Instagram aos podcasts, dos videogames imersivos às séries viciantes da Netflix, navegamos cotidianamente em narrativas e já nem nos damos conta disso.

O romance literário é um gênero narrativo com 4 séculos de história – polêmicas à parte, Dom Quixote (Miguel de Cervantes, 1605) costuma ser considerado o marco inaugural do gênero. É verdade que o gênero teve seu momento de glória entre os séculos XIX e XX, período conhecido como o da “ascensão do romance”, quando a alfabetização em massa passou a se tornar política de estado na maioria das nações desenvolvidas, trazendo ao mundo um exército de leitores. Mas ainda que hoje a maioria de nós passe muito mais tempo diante de telas vibrantes, com imagens em movimento, do que de sequências inertes de palavras, friamente gravadas sobre um fundo branco, o romance continua vivo.

E não se trata apenas de servir de matéria-prima para grandes sucessos das telas – Harry Potter, Guerra dos Tronos, Conto de Aia, Jogos Vorazes, a lista é longa. A narrativa literária tem um modo particular de operar sobre nossa imaginação. Se na tela vemos a imagem das personagens em carne e osso e ouvimos suas vozes, enquanto nossos sentimentos são guiados por elementos como a trilha sonora e o foco da câmera, na literatura só há palavras. Eis a mágica da criação literária: fazer funcionar a capacidade de imaginação do leitor. Diferentemente do que acontece no cinema, na literatura é como se todas as sensações intrínsecas ao andamento da narrativa (o medo, a angústia, a alegria, a ansiedade, a empolgação) surgissem “espontaneamente” de dentro de nós, e não por algum arranjo especial de estímulos sensoriais externos. São apenas o efeito das palavras sobre nossa consciência.

Há uma intimidade entre leitor e narrador que domina a literatura de uma forma única. Não se lê um romance como quem espia de fora, entre um punhado de pipoca e outro. Na obra literária, é como se estivéssemos dentro da cabeça e do coração das personagens. Por isso a literatura tem um poder incomparável de gerar empatia e de explorar a subjetividade humana. E essa capacidade pode ser empregada para nos dar acesso a sentimentos e visões de mundo que de outra forma jamais entenderíamos.

Se o cinema acontece do lado de fora do corpo, e podemos assistir a um filme com dezenas de outras pessoas, a literatura acontece do lado de dentro, na solidão da consciência de cada um. O efeito produzido por uma boa narrativa literária é o de gerar uma intimidade intensa entre leitor e personagens, como se nos apropriássemos da consciência daqueles seres de fantasia.

É a percepção que se tem ao ler “Torto Arado”, romance de Itamar Vieira Junior, vencedor dos prêmios Leya (2018), Oceanos (2020) e Jabuti (2020). Nele somos apresentados à história de vida de duas irmãs quilombolas, Bibiana e Belonísia, que nascem e crescem numa fazenda em Minas Gerais, assim como haviam feito seus pais e avós, descendentes de escravos. O que pensa e sente uma mulher nessa condição histórica? Como reage diante da sua realidade? Quais dilemas enfrenta? Onde junta forças para viver? Confesso que nunca havia pensado nisso.

Pois graças ao texto de Itamar, fui capaz de “viver” indiretamente essas duas existências, de sentir a vida a partir de sua própria pele, encenada no teatro da minha imaginação. Difícil conceber uma forma de existência humana mais distante da minha – sou um homem branco, nascido e criado em Curitiba. No entanto, após ler o romance, sinto como se soubesse, ao menos em parte, como se sentem mulheres como Bibiana e Belonísia.

 

“Durante anos acordei, no meio da noite pesada, molhada de suor, com esse mesmo sonho, contado de muitas maneiras, mas sempre com o homem bem-vestido, a cerca, o punhal de Donana e o sangue que brotava do chão.”  

 

A ficção, seja na literatura ou no cinema, cria um universo particular, em princípio independente do mundo real, mas com grande poder de nos envolver emocionalmente. Exatamente por isso é capaz de nos fazer pensar sobre nossas vidas. Podemos vibrar com as aventuras de Harry Potter, mesmo tendo plena certeza de que Hogwarts é pura fantasia.

Mas se engana quem pensa que ficção e realidade são mundos apartados. Se Hogwarts não existe, os dilemas da vida para um jovem órfão são bem reais. Em outros casos, como em “Torto Arado”, há uma relação inequívoca entre o universo ficcional e o mundo que nos cerca. O autor, Itamar Vieira, passou anos de sua vida trabalhando junto às comunidades quilombolas de Minas Gerais e da Bahia, e foi essa experiência direta que gerou a matéria-prima de seu romance.

Não importa que Bibiana e Belonísia não tenham existido de verdade, elas ganham vida no texto que se materializa na imaginação do leitor. É por sua proximidade com pessoas reais, com situações vividas por milhares de seres humanos de carne e osso, e que nos chegam com tamanha intensidade e realismo nas páginas do romance, que as personagens nos encantam e emocionam, abrindo janelas para uma percepção renovada do mundo.

Na última década, iniciou-se uma revolução profunda que vem alterando dramaticamente a sociabilidade humana. Graças às redes sociais e seus algoritmos, nossas interações com outras pessoas tendem a se restringir a bolhas de pensamentos que soam em uníssono, fazendo de nós cada vez mais avessos e reativos à diferença, incapazes de nos sensibilizar com a história dos que não compartilham de nosso lugar no mundo. O romance literário, com seu extraordinário poder de gerar empatia, fala da subjetividade humana com profundidade inigualável. Talvez ele seja hoje o melhor remédio de que dispomos para combater a doença do isolamento social, pois a boa literatura tem uma capacidade inigualável de nos transportar para mundos que estão além de nossa própria existência, e de trazer pessoas como Bibiana e Belonísia para perto de nós.

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Autor: Jeferson Ferro - professor da Uninter


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