A entrega de Karla à cidade renascida das águas

Autor: Leonardo Tulio Rodrigues – Estagiário de Jornalismo

Empilhando móveis e objetos pessoais em cima de caminhões de carga, moradores de São Rafael, município localizado na região do Vale do Açu (RN), iam abandonando aos poucos suas residências. À medida que a água ocupava o espaço do núcleo urbano, a paisagem se moldava a uma nova realidade naquela região.

A cena remete à construção da barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, em 1983, que deixou submersa toda a cidade, obrigando o poder público a realocar os moradores e a reconstruir São Rafael em outro lugar. Esse é o retrato de uma população que foi obrigada a se retirar do lugar em que vivia há décadas em nome do progresso.

“Eu tinha apenas 10 anos, mas lembro da mudança para a nova São Rafael, uma cidade totalmente planejada”, relata Karla Michelle Nobre Minervino, agente comunitária e moradora da cidade.

As condições na nova São Rafael não diferem muito da grande maioria das cidades interioranas, nem da antiga São Rafael. Apesar de estar localizada próxima à barragem, a cidade de pouco mais de 8 mil habitantes tem dificuldade de promover o acesso à água potável para toda a população.

Essa é a cidade onde Karla Michelle vive desde a infância, embora tenha nascido na capital, Natal. Entre suas lembranças, a inundação da antiga cidade ocupa grande espaço. Ela lembra que na época muitas pessoas receberam novas moradias, mas o projeto de mudança da localização da cidade não deu a elas novas formas de trabalho e de desenvolvimento profissional.

Antes da construção da barragem, a população trabalhava em atividades de agricultura familiar e mineração de scheelita (minério usado na indústria de computadores, monitores de TV e celulares). Após a mudança, desenvolver as atividades não foi mais possível. A escassez de oportunidades está ligada à falta de investimento para abastecer as localidades fora do núcleo inicial da cidade. Com baixa industrialização e poucas oportunidades de emprego, alguns preferem sair da região e se arriscar na capital do estado.

Karla, no entanto, preferiu permanecer e busca transformar a realidade local por meio do seu trabalho como agente comunitária em saúde. A paixão pela profissão nasceu durante sua estadia em Natal, após um contato profundo com o sistema de saúde tanto na iniciativa privada quanto na pública. “Desde o primeiro dia de trabalho, eu me apaixonei pela profissão. Além de educadores sociais, nós somos mediadores entre a população e o poder público”, explica.

Com o passar do tempo, ela não só tinha vontade como viu a necessidade de se aprimorar na função, para oferecer serviços cada vez melhores à população. Ao procurar cursos na área, deparou-se com o curso tecnólogo em Agente Comunitário de Saúde e Endemias da Uninter. “Foi a primeira instituição que deu a oportunidade de a minha profissão crescer”, diz.

Karla atribui a maior visibilidade da profissão atualmente aos novos cursos na área, como o que está presente na grade de cursos da Uninter. Além deste curso, ela participa do curso técnico do Ministério da Saúde e lidera projetos na área da saúde para a população de São Rafael.  Karla também é embaixadora da Casa dos Agentes, projeto criado pela Johnson & Johnson para a valorização dos profissionais da área. As iniciativas ganharam notoriedade e chamam a atenção do corpo docente da universidade.

Iniciativas transformam a realidade de moradores 

Segundo o secretário de Saúde de São Rafael, Luiz Henrique Marinho de Souza, umas das dificuldades enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no município é a questão financeira. Apesar de conseguir atingir cerca de 90% da população e estar entre as cidades que mais investem proporcionalmente na área da saúde com recursos internos, ainda são poucas as possibilidades presentes no município.

“Mesmo com recursos do Governo Federal, a maior parte dos gastos fica para o município”, destaca Luiz.

Sem maternidade local, as gestantes da São Rafael são obrigadas a se deslocarem cerca de 100 quilômetros até a cidade de Mossoró para conseguir realizar exames e dar à luz seus filhos. São poucas as crianças que realmente nascem no município, por meio de partos com o auxílio de profissionais da região.

A Consultoria em Amamentação e Cuidados com a Criança é uma iniciativa formada com recursos próprios de Karla Michelle junto ao setor de saúde pública da cidade. A ideia é que o local utilizado para atendimentos e consultorias a mães e seus filhos se torne, nos próximos anos, um ponto de coleta do Banco de Leite Materno do estado.

“Percebi a dificuldade que algumas mulheres tinham com o cuidado pós-parto e decidi montar um espaço que pudesse acolher essas mães, ajudá-las na prática com a amamentação e outros cuidados com o bebê”, conta a agente.

Também com o intuito de auxiliar a população, o Programa Hiperdia acompanha pacientes hipertensos e diabéticos. Segundo a profissional, a ideia era proporcionar aos pacientes informações sobre como utilizar alimentos e plantas medicinais em prol de sua saúde. A construção de uma horta onde são plantados morangos, tomates, pimentões e vários tipos de ervas para chás potencializou a ação dos profissionais da saúde de São Rafael.

Karla também é autora de um projeto direcionado à comunidade LGBTQIA+ presente em São Rafael e arredores. Ao presenciar uma cena de transfobia em um atendimento de saúde na cidade, ela viu a necessidade de mudar essa realidade e acolher os jovens que passam por esse processo. O contato com a Secretaria de Saúde da época fez com que nascesse o projeto que hoje está em sua terceira etapa de desenvolvimento.

O objetivo é auxiliar jovens que se descobriram fora do padrão de gênero com o acompanhamento psicológico e a hormonioterapia, direcionando para outros municípios com melhor estrutura, se for o caso. Segundo dados do DataSus, em 2020 foram realizadas apenas 38 cirurgias e 3.653 tratamentos hormonais em todo o Brasil. Os números de atendimentos a pacientes transgênero em São Rafael não são divulgados por respeito à privacidade dos que sofrem preconceito diariamente.

“Eu fico responsável pessoalmente pelo agendamento desses pacientes. Desde o início, eu procurei ouvir o que eles esperavam da nossa atuação”, conta Karla.

Ela afirma que esse preconceito contra a população trans está presente também no ambiente da saúde e, por isso, toma muito cuidado ao selecionar profissionais para atuar no projeto e cuidar das informações sobre seus pacientes.

“Com apoio de colegas que pensam como eu, aliado ao diálogo que sempre estabeleço com a gestão local, já consegui colocar em prática algumas ações”.

Juntamente a outros profissionais de saúde da cidade, Karla mantém o acompanhamento a jovens transgênero em São Rafael e os ajuda com o agendamento de consultas na capital do estado. Segundo ela, em todos os projetos são atendidas cerca de 190 famílias do centro da cidade e parte do bairro José Pequeno.

“Karla é o exemplo de uma servidora muito interessada, com ideias muito bacanas pra que a gente possa desempenhar coisas diferentes em São Rafael”, afirma o secretário de Saúde.

Em defesa dos agentes comunitários

Embora relevante para a população, a profissão de Karla ainda luta pela valorização. São cerca de 265 mil agentes comunitários atuando no campo da Saúde da Família, na prevenção de doenças e na promoção da saúde em ações domiciliares, comunitárias, individuais e coletivas. “Somos, além de educadores sociais, mediadores entre a população e o poder público. Por isso, acredito que os agentes precisam valorizar a profissão, buscando sempre o aperfeiçoamento”, diz Karla.

Apesar de muito presentes em diversos campos da sociedade, a profissão do agente comunitário ainda passa por dificuldades. Isso porque somente neste ano de 2023 entrou em vigor a Lei 14.536/23 que reconhece os agentes comunitários de saúde (ACS) e os agentes de combate às endemias (ACE) como profissionais de saúde.

A regulamentação da profissão e dos cursos na área também são desafios enfrentados pelos profissionais. Na opinião de Karla, o trabalho do agente comunitário se perdeu ao longo do tempo e a atenção básica foi totalmente desconfigurada. “Temos que procurar qualificação. Nós temos muitas responsabilidades e temos que procurar os direitos da nossa categoria”, ressalta.

Incorporar HTML não disponível.
Autor: Leonardo Tulio Rodrigues – Estagiário de Jornalismo
Edição: Larissa Drabeski


Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *