Os limites éticos na exploração dos animais

Autor: Matheus Pferl - Estagiário de Jornalismo

Um dos conselhos educativos que mais ouvimos na vida é o clássico “trate os outros como gostaria de ser tratado”. Agora este princípio de igualdade parece estar se estendendo para além dos seres humanos. Os aspectos éticos da relação entre humanos e outros animais vêm ganhando relevância nos últimos anos.

Esse tema foi abordado pela bióloga Adriana Ribeiro Ferreira em live da ll Maratona de Sustentabilidade da Escola de Saúde, apresentada pelo professor Rodrigo Silva. “Me sinto feliz e esperançosa que uma temática como essa, que discute a relação dos humanos com os animais, componha um evento de discussão e debate dentro da área ambiental, que é uma coisa relativamente recente e carece de espaço. É importante termos diálogos que tratem do tema, para que ajudemos outras pessoas a despertarem, talvez ver coisas que antes não víamos”, afirma Adriana.

Como os animais foram tratados ao longo da história

A relação entre humanos e animais foi, e é, baseada na exploração. Tratamos os animais como cobaias e meros objetos, muitas vezes subjugados à violência, sem que eles possam se contrapor. Ao longo do tempo, os animais não humanos foram observados, admirados, exaltados, transformados em símbolos, deuses e demônios, inspiraram medo, crueldade, fé, benevolência, se tornaram caça, caçadores, amigos e inimigos, foram amados e até completamente extintos.

Quais animais importam? Aqueles em extinção, os selvagens , os domésticos ou os de laboratório? Alguns animais, como vacas, frangos e porcos, sequer são vistos como “seres”, são reduzidos à condição de produtos. Essa visão é uma herança cultural que privilegia determinadas espécies em detrimento de outras. “Os animais não tem podido ser o que são na sua essência”, diz Adriana.

“Essa discussão passa por nós problematizamos e paramos para olhar com atenção quais são as nossas formas de relação, como eu me relaciono com os animais que fazem parte do meu dia a dia, da minha vida? Os animais são nossos companheiros de jornada, eles têm tanto direito de estar aqui quanto nós, na verdade nós chegamos aqui por último”, comenta Adriana.

Existem 3 conceitos que servem como base para que possamos identificar as referências que utilizamos para entender essas relações. São eles:

  • Especismo: Discriminação preconceituosa baseada na noção de espécie (biológica), notadamente contra os animais, acarretando em sua opressão. Pressuposto de que há uma espécie superior às outras.
  • Utilitarismo: Teoria ética que defende que devemos agir de forma a trazer tanta felicidade quanto possível ao mundo. Para o utilitarismo, o uso de animais não humanos é aceitável apenas se a felicidade que sua exploração causa for maior do que o dano provocado.
  • Senciência: Sua origem está na junção dos termos “sensibilidade” e “consciência”. É a capacidade de ser afetado positiva ou negativamente. Aceita-se que os animais possuem a capacidade de sentir dor, medo, fome, sede, luto, honra, empatia, justiça etc.

Dentro da perspectiva senciente, entende-se que é necessário gerar muito sofrimento para produzir prazeres momentâneos. O uso de animais não aumenta a soma de felicidade no mundo, na verdade a diminui, e muito.

A afirmação de que os animais são seres sencientes é derivada da declaração de Cambridge (2012), produzida por vários cientista do mundo todo que se reuniram e, a partir de análises de diversos estudos da neuroanatomia, neurofisiologia, química, física, biologia chegaram à conclusão inequívoca de que os animais sentem, assim como nós.

Se levarmos isso em conta, passamos a questionar certos comportamentos tidos como normais. Faz sentido mantermos zoológicos ou usarmos animais em circos? O que dizer da humilhação e crueldade praticadas nos rodeios, o encarceramento e aprisionamento dos pássaros e dos peixes?

“No meu trabalho de tese de doutorado, eu discuti as ciências normativas, que são a estética, a ética e a lógica para tentar ler a forma com que esse processo de aprendizado em relação aos animais se dá, lendo a realidade por meio destas ciências. Quando tento modificar e mexo na minha estética, eu estou me defrontando com aquilo que é inerentemente admirável, e aí nos questionamos. Explorar, maltratar, é admirável? Isso faz com que surjam uma série de crenças e ideias prévias que são confrontadas, e isso nos desestabiliza”, conta Adriana.

A ética provoca um confronto do senso comum com o conhecimento científico, e isso leva a nos movimentarmos para a ação consciente e a construir argumentos para nos posicionarmos diante da realidade. “Quando se trata de um tema como a relação com os animais, é tão naturalizado que muitos de nós, se não estamos despertos ou se não temos referências para esse debate, sequer nos posicionamos contrários. E depois nos deparamos com a necessidade de sistematizar o nosso pensamento e alterar a nossa conduta, com base em uma nova estética e uma nova ética”, completa Adriana.

Dentro da temática ambiental, esse debate não é apenas filosófico, mas tem relação direta com as crises ambientais, que se baseiam em nossa forma de relação com os animais. Adriana afirma que no Brasil nós temos uma história de exploração e destruição da natureza, e vivemos em um modelo de produção e consumo que leva até as últimas consequências a lógica da natureza como recurso: “Vivemos em um capitalismo pautado na ideia de crescimento infinito, que gera concentração das riquezas e desigualdade, injustiça e exclusão social”, ressalta.

Mudanças climáticas, perda de biodiversidade, refugiados ambientais, novas pandemias, fome, diminuição de recursos hídricos, perda de solo, desertificação e outros problemas estão dentre as consequências desse modo de viver no planeta.

Dados

Baseando-se em dados produzidos por institutos ambientais internacionais e pelo IBGE, Adriana destaca que hoje a pecuária contribui com 55% das emissões de gases do efeito estufa no mundo, de forma direta ou a partir de mudanças do uso da terra, como o desmatamento ligado às pastagens e à agricultura. Também é responsável pela disseminação dos alimentos transgênicos e pelo uso indiscriminado de agrotóxicos. Além disso, sete em cada dez doenças surgidas desde a década de 1940 têm origem animal, inclusive as pandemias.

Os limites biológicos e o estresse crônico de animais de criação têm sido tensionados ao extremo, provocando o adoecimento e o uso permanente de antibióticos e outros medicamentos. A baixa adoção de medidas de biossegurança nas atividades da indústria da carne gera constantes riscos de contaminação de produtos e infecção de pessoas, principalmente trabalhadores da área. Diariamente são abatidos cerca de 4 milhões de porcos e 165 milhões de frangos no mundo. São gerados cerca de 600 milhões de quilos de carcaças de bovinos por mês no Brasil.

Metade dos casos de trabalho escravo flagrados no Brasil entre 1995 e 2020 foram no setor da pecuária. Diabetes tipo ll, doenças cardiovasculares e obesidade, além de diversos tipos de câncer estão direta ou indiretamente ligados à dieta baseada em animais. Cerca de 62% das áreas desmatadas na região amazônica são produto da pecuária.

“Estamos sujeitos a um sistema alimentar. Mesmo assim, não se trate apenas de escolhas individuais, não podemos nos paralisar diante desse sistema. Nossas escolhas têm impactos individuais e coletivos. No futuro é improvável que seja possível sustentar essa dieta baseada em animais”, afirma a pesquisadora.

Há saída?

Adriana afirma que a primeira saída é o debate: “Junto a isso, devemos adotar várias práticas, como a oposição e o combate à exploração animal, a oposição à injustiça independente de quem seja a vítima, entender e reconhecer os animais não humanos como sujeitos de uma vida, com o legítimo interesse em viver bem e feliz, na essência da natureza, com a educação e legislação em consonância com o que a ética e a ciência tem a dizer, entre outros”, completa.

Esse debate pode propiciar um conhecimento científico mais relacional, uma contraposição aos valores utilitaristas, antropocêntricos e especistas, a consideração da senciência dos animais, consideração moral por esses seres, orientando condutas, pensamentos e decisões acerca das formas de relação entre todos os animais. “Devemos assumir um compromisso ético, de questionar e nos opor a um pensamento hegemônico que submete a natureza e os seres vivos a uma lógica de exploração e de morte. E ensinar que todas as formas de vida são portadores de um legítimo interesse em viver”, diz Adriana.

Ao final, visivelmente emocionado, Rodrigo comenta sobre o impacto que sentiu por causa da fala de Adriana: “A voz chega a ficar embargada. Existe um filme chamado ‘A natureza selvagem’, sobre um rapaz que decide viver em meio aos animais e à natureza. O rapaz morre, e ao final desse filme é impressionante como você não tem reação para nada, é um impacto tão grande que você não tem reação. A sua palestra, Adriana, é exatamente assim. Nos faz ter vontade de se isolar, refletir e pensar em tudo isso”, conclui o apresentador.

Você pode conferir a gravação completa do evento na página oficial da Uninter no Facebook e pelo Youtube.

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Autor: Matheus Pferl - Estagiário de Jornalismo
Edição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro
Créditos do Fotógrafo: L214 - Ethique & Animaux/Wikimedia Commons


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