O mundo virtual e as barreiras entre pais e filhos

Autor: Oseias Marques Padilha (*)

Todo ser humano em pequena ou grande medida flerta com a agressividade que lhe é ínsita. Sim, a natureza humana é violenta. Uma breve espiadinha na nossa história com as colonizações, as guerras, a escravidão… E isso pode nos convencer de que se trata de uma afirmação no mínimo coerente. Se não quisermos ir tão longe, basta olharmos para o mundo das crianças, que não vivem apenas entre “duendes, fadas e terras encantadas”. O mundo fantasiado por elas em suas brincadeiras, muitas vezes, é extremamente assustador! Tenho um filho de seis anos de idade e ele reuniu todos os seus brinquedos, carrinhos, ursinhos de pelúcia e me convidou para brincar. Aquele cenário que, em sua maioria, era protagonizado por bonecos de pelúcia que esbanjavam fofura, deu lugar a uma verdadeira guerra, em que todos guerreavam contra todos. E enquanto brincava, sob a direção de meu pequeno, responsável por todo aquele roteiro caótico, pensava sobre a afirmação de um filósofo da modernidade chamado Thomas Hobbes, que defendia a tese de que na era primitiva da humanidade, desprovida de leis e contratos sociais o que imperava era justamente uma “guerra de todos contra todos”. Era esta imagem que ali se apresentava.

Além do pequeno de seis anos de idade, também tenho um filho adolescente, que explora possibilidades de entretenimento no ambiente virtual. Jogos de luta, RPG, futebol e por aí vai. É um gamer aficionado. Estamos falando aqui de algo muito natural, e que todo ser humano faz independentemente da idade que é brincar com a sua imaginação. Meu menino menor, ao brincar com tudo aquilo, sabe que, do ponto de vista civilizatório, aquele contexto é extremamente reprovável (embora sob o ponto de vista de outras pessoas possa ser aceitável); o maior, adolescente, sabe do mesmo modo (ainda que os dois não utilizem estes termos para explicar, é claro). Porém, o que fantasiamos e imaginamos é de suma relevância pra entendermos a nossa natureza.

Contudo, as recentes tragédias ocorridas no Brasil levantaram novamente o debate acerca da influência da tecnologia, das plataformas digitais e o entretenimento que oferecem, sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente e qual é o nível de relação com estes ataques às escolas. Neste tempo em que muito se fala do problema da “uberização”, da terceirização em diversas áreas, projetamos aos aparelhos eletrônicos e à indústria de jogos uma responsabilidade que talvez inexista. É óbvio que muitos conteúdos presentes nos jogos eletrônicos são inadequados para determinadas idades, assim como filmes, desenhos e obras de literatura. E, para isso, existe a necessidade de observarmos as classificações indicadas para cada faixa etária.

O mais preocupante de tudo isso é o fato de muitas crianças e adolescentes terem o espaço virtual como único ambiente de acolhimento. É verdade que neste espaço, que, de acordo com o sociólogo Pierre Lévy, é um complemento da nossa realidade, existe também a exclusão, discriminação, bullying cibernético e discurso de ódio. Mas, ao mesmo tempo, cada um é capaz de encontrar para si sua bolha onde se sente inserido e se sente indivíduo, algo que é ainda mais caro aos adolescentes. E é nesse ponto que reside o perigo.

Quando a aceitação e a comunidade encontradas nestas bolhas contrastam com o ambiente familiar, em que existe um muro quase instransponível entre o menor e o adulto, permitimos que nossas crianças e adolescentes busquem neste ambiente figuras identificatórias, que as façam esquecer seu abandono. Sim, além do fato de muitas crianças serem abandonadas por seus pais e serem acolhidas por organizações da sociedade civil Brasil afora, há também aquelas crianças abandonadas entre muros, em apartamentos, cercadas por quatro paredes em frente às telas de celular, tablet ou computador.

Mas esse muro instransponível é construído, tijolinho por tijolinho, ainda mais quando julgamos ser mais qualitativo o tempo em que jogávamos bolinha de gude e nos sujávamos no quintal de casa. O saudosismo nos distancia desta juventude e passa a eles a ideia de que sempre seremos um estrangeiro incomunicável em sua terra.

Para lidar com todas estas questões, pode não existir uma receita, mas há um caminho com o qual ainda não estamos acostumados a trilhar, muitas vezes em virtude de uma relação mais autoritária que nossos pais tiveram conosco. Este caminho é o da escuta e não se refere simplesmente a pedir um relatório ao filho a fim de saber o que ele fez na escola o dia todo. Mas esta escuta pode se dar no brincar, no “estar junto” e, na medida do possível, tentar entender de que modo aquela criança ou adolescente compreende o mundo, dar significado a seu sofrimento, reconhecê-la como um indivíduo. Afinal, como diz o título de uma obra do psicanalista britânico Donald W. Winnicott, “tudo começa em casa”.

Oseias Marques Padilha, professor de Filosofia e Psicanálise na Uninter, especialista em psicologia social.

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Autor: Oseias Marques Padilha (*)
Créditos do Fotógrafo: Oleksandr Pidvalnyi/Pixabay


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