Milei e a difícil arte de governar
Autor: *Guilherme Frizzera
O governo de Javier Milei chega ao fim do segundo ano cercado por sinais de desgaste acelerado. A denúncia de possível corrupção envolvendo sua irmã, Karina Milei, e a derrota nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, a mais importante do país, mostram a fragilidade de uma gestão que prometia ruptura, mas hoje enfrenta uma maioria parlamentar adversa. Nada disso é surpreendente: desde os primeiros cem dias, já estava claro que sua margem de manobra seria mínima.
A Argentina atravessa quase uma década de crise econômica persistente. Diferentemente dos Estados Unidos sob Donald Trump, em 2017 e em 2025, ou do Brasil sob Jair Bolsonaro, em 2018, a extrema-direita não assumiu o poder em um cenário de estabilidade. Tanto Trump quanto Bolsonaro contaram com economias em relativo equilíbrio, o que lhes deu espaço para prolongar bravatas e desgastes institucionais sem impactos imediatos no cotidiano da população. Mas quando foram desafiados por uma crise inesperada e de enorme gravidade, a pandemia de Covid-19, responderam com mais retórica do que políticas públicas. O resultado foi o mesmo para ambos: a não reeleição. O episódio ilustra a regra simples de que, em algum momento, a política exige governar, e não apenas performar. Esse oxigênio nunca existiu para Milei. A estafa da sociedade argentina tornou inviável sustentar o governo apenas em discursos.
Os primeiros movimentos foram dirigidos a conter a inflação. Houve redução consistente, com índices mensais abaixo de 2% nos últimos meses, o que o governo exibe como bandeira. Mas a taxa segue elevada em termos anuais e muito distante das metas de estabilidade de economias estáveis. Foi um alívio, não uma solução definitiva, e as bases da instabilidade continuam intocadas.
Em paralelo, Milei apresentou um receituário liberal ortodoxo, restrito à privatização de algumas estatais sem peso estratégico e cortes em políticas públicas sociais. Para o mercado financeiro, isso é suficiente, pois não se trata de resultados concretos, mas da expectativa de que um ponto futuro justifique o presente. Nesse cálculo, políticas sociais são tratadas como entraves e a democracia se converte em mero detalhe. Enquanto isso, cortes em saúde, na educação, nas aposentadorias, além de travar uma guerra contra o funcionalismo público, são apresentados como coragem reformista, quando na verdade aprofundam a desigualdade e corroem a confiança institucional.
Há quem veja nesses movimentos um processo de “recuperação”, traduzido em índices pontuais de crescimento ou em queda relativa da inflação. Mas confundir melhora conjuntural com transformação estrutural é mais sintoma de desejo do que de análise crítica. É a torcida ideológica que enxerga normalidade em indicadores que continuam entre os piores do mundo. Nesse otimismo seletivo, crises políticas são tratadas como ruído irrelevante, quando na realidade têm peso determinante sobre os rumos da economia. Nenhum investidor ou cidadão comum ignora o impacto de um Congresso hostil, de protestos massivos ou de denúncias de corrupção no coração do governo.
O governo Milei repete uma fórmula conhecida de buscar uma suposta normalidade internacional por meio de submissão às potências, privatizações de baixo impacto e abandono de projetos de desenvolvimento próprios. O discurso do presidente argentino na 80ª Assembleia Geral da ONU confirma esse padrão. Ao elogiar Donald Trump, atacar a própria organização em cujo púlpito discursava e repetir slogans ultraliberais, o presidente reforçou a imagem de um país que abdica de autonomia em troca de alinhamento automático. A política externa converte-se em vitrine ideológica, enquanto a realidade interna se deteriora. Esse tipo de “Estado Normal” nunca estabilizou os países latino-americanos; ao contrário, reduziu a capacidade de decisão e reforçou dependências.
O revés em Buenos Aires é simbólico, pois, se a província mais populosa já rejeita o governo, Milei terá dificuldade em converter derrotas locais em vitórias nacionais. O desgaste cresce com suspeitas de corrupção envolvendo familiares, minando a narrativa de ruptura. Às vésperas das legislativas, o risco é cristalizar um Congresso adverso e desmontar a imagem de um líder que não cede.
Tudo isso poderia ter sido previsto e foi. A margem estreita de ação estava dada desde o início. As bravatas que serviram a outros líderes da extrema-direita não encontram terreno fértil em uma Argentina esgotada. O país exige soluções de longo prazo e reconstrução institucional. O governo, porém, respondeu com medidas improvisadas e slogans. Fazer a Argentina grande novamente exige mais do que privatizar estatais irrelevantes, alinhar-se a Washington e reprimir protestos. Exige governar um país real, com problemas reais e é aí que o projeto Milei encontra seus limites mais duros.
*Guilherme Frizzera é Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL/UnB). Atualmente, é coordenador do curso de Relações Internacionais na UNINTER.
Créditos do Fotógrafo: Rodrigo Leal/Banco Uninter e Mariano Di Luch/Pexels


