Cultura indígena permanece viva no dia a dia da sociedade brasileira

Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo

As representações sociais surgem de conhecimentos construídos pela coletividade e são colocadas em prática na busca por algo maior, segundo teoria desenvolvida pelo psicólogo social Serge Moscovici, nos anos 1960. O teórico também afirmava que essas representatividades permeiam o habitat de determinado grupo e se dão através da comunicação. Nesse sentido, os mitos são as representações sociais dos povos indígenas.

De acordo com a professora e nutricionista Thiana Becker, que recentemente defendeu a dissertação de mestrado acerca dos povos nativos, quando a comunicação atinge os indivíduos eles passam a internalizar o conhecimento e a associar as diferenças culturais. A partir disso, surge o sentimento de respeito. A profissional afirma que conhecer a realidade é fundamental para que se entenda os porquês de uma vivência.

Thiana lembra que em 2021 comemora-se o centenário de Paulo Freire, educador e filósofo que carregou pensamentos humanistas e transformou vivências em projetos educacionais. Para ele, uma prática educativa precisa ser democrática e culturas não devem se sobrepor, pois não existe melhor nem pior, todas devem ser respeitadas e valorizadas. “Isso faz com que lutemos mais pelos nossos direitos e bem-estar”, completa. A pedagoga lembra que “ensinar é promover encontros” e traz esse debate ao falar sobre os povos Guarani-Mbyá.

“Entender essa importância do mito é se aproximar desse povo. De certa forma, entender a estruturação sócio cultural, como eles vivem. Quando você começa a entender tudo isso, quando você conhece algo ou alguém, você começa a respeitar. E o nosso mundo está tão carente disso”, salienta. A profissional ainda questiona: “Serão os índios que diferem do todo ou o todo que difere dos índios?”

A cultura Guarani-Mbyá

Os mitos indígenas são narrativas que partem de um conjunto de crenças e fazem parte do imaginário ligado à fé. Nas histórias relatadas pelos Guarani-Mbyá, há a aparição do ser supremo Nhanderu. Assim como para muitas civilizações antigas, a palavra é sagrada. Nhanderu, através da palavra-alma, fez com que surgissem todas as coisas do mundo.

Segundo a crença, Nhanderu ainda elencou quatro deuses, chamados de “verdadeiros pais”, um para cada canto do mundo. Para não ficarem sozinhos, eles se juntaram às “verdadeiras mães”, representadas pelos quatro pontos cardeais da rosa dos ventos. No batismo de uma criança Guarani-Mbyá, os verdadeiros pais e mães sopram para os caciques qual será o nome, através da palavra-alma em sonhos e rituais.

A professora Thiana diz que esses povos são descendentes dos guaranis paraguaios e hoje podem ser encontrados no sul de Santos (SP), em Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Eles se consideram os escolhidos por Deus, os homens se denominam Jeguakáva e as mulheres, Jashuká. Eles ainda têm o Nhandereku, que são as regras que ditam comportamentos na vida cotidiana.

“Seguindo as normas do Nhandereku e fazendo uma alimentação que é realmente aquela que Nhanderu indicou com os cultivares sagrados, eles chegariam a um estado de espírito chamado Aguydje. Esse é um estado em que o corpo alcança a pureza e com isso consegue chegar e adentrar na terra sem mal, a ilha Yvy marã e’ỹ”, conta.

A alimentação indígena

Os alimentos impulsionaram muitos avanços, principalmente em expansões marítimas. Quando se fala em alimentar, o termo percorre diferentes áreas do conhecimento e gera interação, emoção, cuidado e saúde. Segundo Thiana, a alimentação brasileira tem origens portuguesas, africanas e indígenas.

Hoje, alguns dos alimentos indígenas mais consumidos ainda são o milho, a mandioca, cana, amendoim, erva-mate, feijão, banana, melancia, palmito, batata doce e abóbora. Apesar do que muita gente pensa, os povos nativos não contribuíram apenas com os ingredientes, mas influenciaram também na maneira de plantar, preparar e servir.

Ao chegar aqui, os portugueses se envolveram com as mulheres indígenas, pois tinham dificuldades de trazer alimentos da Europa e precisavam delas para se manter. Foram as comidas preparadas por elas que possibilitaram as expansões em território brasileiro. Foi dessa forma também que os nativos passaram a ter contato com alimentos que antes não tinham, como o porco, a galinha e o açúcar.

“O doce que o índio comia, e que passou depois a fazer parte da alimentação dos portugueses, era farinha de mandioca ou de milho com mel ou melado de cana. E eles usavam isso tanto para tomar café quanto para lanches, servia como uma espécie de bolo ou pão”, explica Thiana.

A nutricionista conta que apesar de comerem os mesmos ingredientes, cada grupo indígena plantava e servia à própria maneira. A partir das expansões, esses povos passaram por entrosamentos e aderiram a novas formas de culturas, conforme a colonização foi sendo tomada. Thiana cita o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que dizia que a cozinha brasileira era constituída de dois tipos, a de dentro e a de fora.

A cozinha de dentro era realizada apenas em ocasiões especiais e quem cozinhava eram as sinhás, que utilizavam produtos muito caros e refinados em processos longos de cozimento. Nesses casos, eram utilizados ingredientes indígenas, mas em pratos de influência portuguesa. Já a cozinha de fora, eram receitas do cotidiano, preparadas por escravas indígenas.

“Naquela época, quando se faziam esses grandes eventos e as sinhás costumavam cozinhar, os europeus gostavam muito de registrar as comidas. Eles faziam seus cadernos de receitas e a alimentação era em sua maioria de base portuguesa. No dia a dia, as receitas indígenas acabavam esquecidas. Um dos motivos que não há tanto registro das receitas, da formação dos pratos. Só tem a citação dos ingredientes utilizados.”

As plantações dos alimentos também são uma das principais razões para a importância das demarcações de terras indígenas, que são consideradas sagradas. Thiana explica que eles não podem plantar em qualquer terra e também não é em qualquer espaço que sementes e frutos “vingam”. Os indígenas precisam dessas demarcações para a própria sobrevivência.

Até os dias atuais há estereótipos sobre esses povos serem rebeldes e preguiçosos, mas existe um motivo histórico cultural para isso. As atividades nas aldeias são realizadas de forma coletiva. Os homens são responsáveis por tirar a mata, caçar e pescar. Já as mulheres, por arar, plantar, colher e preparar o alimento. No processo de colonização, os portugueses as colocaram para trabalhos domésticos e os homens passaram a executar tarefas que antes eram delas, como a plantação. Assim, eles saíram do habitual e levaram tempo para se adaptar às novas funções.

“A gente tem que colocar na nossa vida também os olhos no coração, para ver através do coração. Colocar as emoções, se colocar no lugar do outro. Você gostaria de estar recebendo o tratamento que você está dando? Por que não valorizar aqueles que estão perto? Por que apenas dizer ‘eles são diferentes, deixa lá vivendo no mundo deles e eu vou viver no meu’? Por que não há trocas? Trocas culminam em conhecimento e, hoje em dia, com toda essa tecnologia que nos une, é tão mais fácil você conhecer, pesquisar, ir em busca das novidades daquilo que você ainda não conhece e que te trazem realmente a valorização das culturas diferentes”, conclui a profissional.

Thiana abordou o tema na segunda noite do 1º Colóquio de Práticas na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Uninter, promovido pela Escola Superior de Educação (ESE). A live, transmitida no dia 25.fev.2021, segue disponível para acesso na página EJA Uninter e no canal da ESE. O bate-papo foi mediado pelas professoras Renata Burgo e Marjorie Wilt, tutoras da EJA.

Renata afirma que a apresentação da profissional demonstra que “discutir sobre a multiculturalidade é muito mais profundo e necessário do que o simples falar e comentar. É necessário muito estudo, se aprofundar realmente nas leituras e não sair reproduzindo aquilo que a gente escuta sem antes pesquisar”.

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Autor: Nayara Rosolen - Estagiária de Jornalismo
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Carla Antonini/Wikimedia Commons


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