Agente de saúde é premiada por atenção à comunidade LGBTQIAPN+

Autor: Nayara Rosolen - Jornalista

De uma cidade de quase oito mil habitantes, São Rafael, no interior do Rio Grande do Norte, Karla Michelle Nobre Minervino luta contra os preconceitos da profissão de agente comunitário de saúde (ACS) e a favor dos direitos e da saúde da comunidade LGBTPIAPN+. Nessa caminhada, mais uma batalha foi vencida e Karla foi premiada na 18ª Mostra Brasil, Aqui tem SUS com o projeto População LGBTQIAP+ sob a ótica do cuidado do agente comunitário de saúde: Um relato experiência.

O reconhecimento aconteceu no dia 18 de julho de 2023, no Teatro Rio Vermelho, no Centro de Convenções de Goiânia (GO), durante o 37º Congresso do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). O evento premiou 73 ações das 535 inscritas e a iniciativa de Karla aparece entre as 25 medalhas da premiação geral.

“Fiquei muito feliz, me emocionei muito, porque no dia passou um filme na minha cabeça. Muitas vezes foi dito, até por colegas de profissão, que isso não é serviço de agente, que esse não era o caminho. Mas eu quero mostrar e valorizar a minha profissão. Não no intuito de aparecer, e sim fazer algo que inspire os outros”, declara a agente.

Egressa do curso de Tecnologia em Agente Comunitário de Saúde e Endemias  da Uninter e pós-graduanda em Saúde Pública com ênfase em Saúde da Família e Práticas Integrativas e Complementares, Karla diz que a grande diferença do projeto é ter sido desenvolvido por uma ACS, com apoio da gestão desde o princípio, atualmente com a Secretária de Saúde do município, Maisa Emanuela da Silva.

Maisa garante que a agente é “muito estudiosa” e que, por meio do projeto, ajuda muitas pessoas, não só do município. “Eu fiquei encantada. Tudo o que está ao meu alcance, sempre corro atrás. Eu gosto de pessoas que olhem e andem para frente, então o pensamento dela ‘bateu’ muito com o meu. Tivemos a oportunidade de ir a um congresso em Natal (RN) e as pessoas que estavam na sala gostaram bastante, porque é algo a ser olhado com outro entendimento, é resolução para muita coisa e dá apoio às pessoas que realmente necessitam”, salienta a secretária.

A coordenadora do curso deTecnologia em Agente Comunitário de Saúde e Endemias na Uninter, Louise Scussiato, afirma que Karla sempre foi muito dedicada em todas as atividades e preocupada com a formação. No último ano da graduação, participou do Programa de Monitoria e atuou mais próxima da coordenação e tutoria, além de criar um grupo de estudos com colegas para auxiliar nas questões acadêmicas.

“Karla sempre teve um olhar crítico se posicionando perante o que acredita ser o melhor para a sua profissão. É uma pessoa transformadora […] É um orgulho saber que uma acadêmica que busca transformar vidas por meio da educação desenvolveu um projeto de tamanha magnitude e foi reconhecida por ele, por meio do prêmio recebido. Karla sempre foi muito esforçada e realmente exerce a função de um Agente Comunitário de Saúde. Tenho certeza que ela não vai parar por aí, terá ainda muito sucesso na profissão. Está transformando vidas e isso me enche de orgulho, me faz acreditar cada vez mais na educação como um poder transformador”, conclui Louise.

Saúde com respeito e acolhimento

Um jovem transexual foi até a unidade básica de saúde (UBS) para retirar uma receita médica para um familiar e foi discriminado pelo nome social. Olhares preconceituosos de uma sociedade machista, que ainda prevalece em cidades do interior do país. Foi essa cena que fez com que Karla tivesse um alerta sobre o tratamento que a comunidade LGBTQIAPN+ recebe na saúde. Um incômodo que a fez ir até a então gestão e propor uma ação de aproximação e maior inclusão desta população.

“Enquanto profissional de saúde, cada um tem sua religião, sua opinião, da porta para fora. Estamos aqui para acolher a população, não para julgar. Somos parte da comunidade, a mediação entre a população e o poder público […] É sobre o outro, não é sobre nós. É essa visão que temos que passar para as pessoas. Respeito no ambiente de trabalho, respeito à comunidade e respeito às outras pessoas”, enfatiza a agente de saúde.

O primeiro passo foi convidar as pessoas para uma conversa e entender quais eram suas principais necessidades. De acordo com Karla, o que mais observou foi a automedicação, pessoas usando hormônio sem autorização médica, além da falta de respeito que enfrentavam diariamente. A profissional começou a ter contato com mais pessoas da comunidade para mediar e direcionar na realização de exames e consultas.

Como não fazem o acompanhamento de hormônio na cidade, no início tentou encaminhar uma das mulheres trans para uma consulta com endocrinologista regulado pelo município, mas “infelizmente, chegou lá e foi maltratada”. A mulher escutou que lá não atendiam “esse tipo de gente”.

A partir disso, foram feitas visitas técnicas para entender o que poderia adequar à realidade de estrutura e de profissionais disponíveis na cidade. Então, passaram a contar com uma equipe multiprofissional da própria rede pública, com nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta, entre outros. O acompanhamento e tratamento de pessoas transexuais, principal público que busca por atendimento lá, acontece em uma unidade de referência na capital Natal, e para isso a prefeitura de São Rafael disponibiliza um carro para transporte dos pacientes.

No início, houve uma resistência até mesmo por parte de profissionais, no entanto, Karla diz que o prêmio serviu também para mostrar a importância e relevância do que fazem. Além disso, foram realizadas capacitações para que pudessem atuar de forma mais acolhedora com a comunidade LGBTQIAPN+.

“O que a gente não conhece, tendemos a discriminar e a colocar de lado. O medo do desconhecido é muito grande. Então, enquanto não se falar sobre o que é uma mulher trans, por exemplo, qual é a situação que vivem… O Brasil é o país que mais mata [pessoas trans], então está na hora de essa pauta aparecer sim. Eu fico muito feliz e orgulhosa do meu município que tem uma gestão que mesmo sabendo do tamanho da cidade, da dificuldade, do preconceito que existe, me deu a oportunidade”, afirma Karla.

Dessa forma, a unidade em que a agente de saúde trabalha se tornou referência de atendimento a pessoas LGBTQIAPN+ e já soma cerca de 36 atendimentos, o que Karla considera pouco por causa da resistência, mas que já é um avanço. A profissional faz o acolhimento também por meio da aproximação dos pais, que aprendem sobre todo o processo e participam de conversas com outros pais que também passam pelas mesmas situações.

Em um vídeo sobre as vivências de pessoas LGBTQIAPN+ no SUS, publicado no Instagram do Conasems do RN, Jhulian Thiago, diz que foi Karla quem o ajudou a contar para a mãe que é um homem transexual. E na sequência, já ajudou com agendamento de consulta e acompanhamento psicológico. “Teve todo um acompanhamento especializado. Conseguimos conversar, me senti mais aberto, em nenhum momento ela nos deixou só”, conta.

Já em reportagem para o Portal do Conasems, Geysa Kayonnara Fernandes afirma que fazia hormonização sem acompanhamento e nunca via resultado, até ter conhecimento sobre a unidade de referência no município. “A médica disse que pela quantidade de hormônio que eu tomava, poderia desenvolver até um câncer. Mas [agora] faço terapia hormonal sem medo no ambulatório de Natal, sabendo que sou bem acompanhada […] A gente sabe que o preconceito nunca vai deixar de existir. Vamos ter que estar sempre debatendo para que as pessoas abram mais a mente e compreendam que precisam nos respeitar”, afirma.

Para a coordenadora Louise, o projeto desenvolvido por Karla representa muitos ganhos para a saúde pública e diz que, quando pensa que foi desenvolvido por uma profissional agente comunitária em saúde, é motivo “de mais orgulho ainda, uma vez que esses profissionais muitas vezes não são valorizados pelo trabalho que desempenham”.

“A Karla, como uma excelente observadora, conseguiu identificar uma necessidade em sua cidade e foi em busca do que poderia ser desenvolvido para acolher e fornecer a atenção adequada para determinada população. Isso é saúde pública, é ter esse olhar observador e crítico, planejar e implementar ações que modifiquem a vida das pessoas, fornecendo uma melhor condição de saúde”, conclui Louise.

A secretária de saúde Maisa garante que, enquanto estiver no cargo, irá fazer o que puder para colaborar com essa e outras iniciativas. Karla busca agora proporcionar qualificação para as pessoas assistidas pela unidade e declara a gratidão não só pela gestão, mas também pela Uninter que valoriza a profissão e incentiva os estudantes em tudo o que se propõem a fazer.

“Eu quero ser uma agente de saúde que inspire outros agentes a fazerem a mesma coisa. Nenhum profissional tem o privilégio e a confiança que temos de entrar na casa da pessoa, de tentar educá-la socialmente e mudar a vida. Quando nós soubermos valorizar a profissão, tudo será diferente”, conclui.

Hoje Karla também é embaixadora do projeto A Casa dos Agentes, que mostrou a trajetória da profissional no vídeo Histórias que inspiram – Sobre o respeito ao ser humano. Além disso, a agente de saúde colabora na equipe de imprensa da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs).

A história de Karla também já foi contada pela Central de Notícias Uninter (CNU), na reportagem A entrega de Karla à cidade renascida das águas.

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Autor: Nayara Rosolen - Jornalista
Edição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Arquivo pessoal


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