A querela da linguagem neutra: questão de política ou de linguística?

Autor: Jeferson Ferro*

Recentemente, grupos conservadores foram às redes sociais protestar contra o ministro da educação depois que o site do ministério publicou a frase “Seja bem-vindx”. Ações do MEC, juntamente com as da pasta da Cultura, têm sido alvo preferido dos embates ideológicos no país. Milton Ribeiro é o terceiro titular da pasta em dois anos de governo, e o “deslize” na comunicação do ministério aumentou o volume das críticas que vem recebendo.

A discussão sobre a linguagem neutra se tornou um dos temas mais quentes no debate que opõe conservadores a progressistas – articuladores de múltiplas pautas identitárias, especialmente as centradas em questões de gênero e raça. O assunto enseja debates na linguística, com argumentos dos dois lados. No campo ideológico, no entanto, não raro o lado conservador se vale de pressupostos linguísticos enviesados para defender suas posições políticas. Proponho aqui discutir alguns pontos centrais deste debate sobre a relação língua e gênero, partindo do que identifico como sendo os quatro principais argumentos da discussão.

  1. Não há relação entre gênero gramatical, o uso das letras ‘o’ / ‘a’ e o gênero das coisas às quais as palavras se referem

De fato, a associação que frequentemente se faz entre a letra ‘a’ ao final de uma palavra como sendo indicativa de um substantivo feminino, enquanto a letra ‘o’ seria do masculino, não se sustenta numa análise do léxico. Há diversos casos que provam que isso não é uma regra – o motorista, a estudante, o doente etc. No entanto, esta associação – ‘a’ para feminino e ‘o’ para masculino – funciona para o caso dos artigos definidos.

Além disso, apesar de não haver uma relação estrita do tipo “todo substantivo feminino termina em ‘a’”, a relação masculino x feminino é representada pela oposição “o x a” em muitas construções de substantivos e adjetivos. Este é um dos pontos principais em que se concentram as tentativas de inserção de uma terminologia neutra ou não binária. Ou seja, o desejo de mudar a língua recai sobre as construções linguísticas que sistematizam este binarismo, nas quais a forma masculina é a privilegiada – o chamado “masculino genérico”.

Na prática, o que se quer é simples: em lugar de usar a palavra masculina para se referir a um conjunto de pessoas de gêneros diversos – “Boa noite, alunos” – busca-se por uma forma que não privilegie um dos lados – nem masculina, nem feminina. É o que tentou fazer a pessoa que escreveu “Bem-vindx” no site do MEC. E é também o que tentam fazer todos aqueles que dizem “Boa noite a todos e todas”, ou ainda “Boa noite a todes” (forma escolhida para se referir às pessoas que não se identificam no binarismo homem/mulher), opções que têm se tornado cada vez mais comuns no Brasil.

Quanto à ideia de as coisas terem um determinado gênero, se por um lado ela nos soa absolutamente ingênua (quem pensa nas qualidades femininas da xícara?), por outro se trata de uma questão complexa da filosofia da linguagem: até que ponto a língua que falamos condiciona nossa visão de mundo, nossa compreensão e atitudes em relação aos outros? Na linguística, esta ideia está presente na clássica formulação de dois pesquisadores norte-americanos, que ficou conhecida como a hipótese Sapir-Whorf, fruto de suas investigações sobre as línguas de povos nativos da América do Norte, realizadas na década de 1930.

Também chamada de relativismo linguístico, a hipótese de que a língua que falamos influencia a forma como pensamos foi fortemente rejeitada a partir da década de 1950, quando o estruturalismo inatista de Noam Chomsky passou a dominar o campo da linguística. Mais recentemente, entretanto, o relativismo voltou a ganhar credibilidade acadêmica. Se hoje há algum consenso é o de que a verdade nesta questão deve estar no meio do caminho, ou seja, as estruturas linguísticas têm alguma influência sobre a organização do pensamento, ainda que não se saiba até que ponto isso é determinante.

  1. O português não tem gênero neutro, ele é assim e pronto!

Aqui estamos diante de uma compreensão equivocada sobre o que é uma língua. Ainda que possam ser entendidas como sistemas, com regras de funcionamento e padrões de relações orgânicos entre seus elementos, as línguas humanas são organismos vivos que se desenvolvem e se transformam ao longo do tempo sob a influência de seus falantes.

O que chamamos de regras linguísticas, portanto, não têm o mesmo status das leis da física ou da biologia, elas são antes fruto de uma combinação entre a lógica interna do sistema e as convenções sociais, e são flexíveis o suficiente para se adaptar aos propósitos comunicativos de seus falantes. A lei da gravidade não muda só porque eu quero voar. Já a língua pode mudar por influência de quem a fala – na verdade, ela muda significativamente a cada geração, tanto no léxico quanto na gramática, sem que sequer percebamos alguma intenção explícita de mudança por parte das pessoas.

Ainda assim, é difícil dizer até que ponto existe liberdade para se mudar a língua – ela funciona graças a um sistema que tem grande autonomia interna. Para que vigorem, mudanças linguísticas precisam ser aceitas pelo conjunto de falantes – nem mesmo aquelas determinadas pela lei, como no caso do acordo ortográfico, estão livres da necessidade de aprovação popular. Se por um lado a língua muda naturalmente ao longo do tempo sem que prestemos atenção a isso, por outro tentativas explícitas de se mudar a língua podem encontra alguma forma de resistência.

  1. Não há relação entre o machismo na língua e o machismo na sociedade

Este argumento normalmente é seguido de exemplos de línguas em que existe uma forma neutra, no entanto não se aboliu o machismo e a violência de gênero entre seus falantes. Ou ainda de casos em que numa determinada língua o gênero feminino é o coletivo genérico – línguas em que se usa a forma feminina para se referir a conjuntos de indivíduos dos dois (ou mais) gêneros, ao contrário do que fazemos no português – e ainda assim a sociedade que fala essa língua é dominada pelos homens.

Realmente, seria maravilhoso se pudéssemos alterar todo o comportamento de uma sociedade, construído historicamente por centenas de gerações ao longo dos séculos de sua existência, apenas mudando um aspecto da língua. Assim como no caso do primeiro argumento levantado acima, o fato de que não existe uma relação causal direta e absoluta entre dois fatores não quer dizer que não haja qualquer relação entre eles.

A língua é um organismo social, portanto incorpora as condições sociais em que vivem seus falantes – machismo, homofobia, racismo etc., tudo isto está nas formas como usamos a língua portuguesa. Não é possível provar que o uso do masculino como genérico na língua portuguesa é resultado direto do machismo que vigora em nossa sociedade. Por outro lado, o sentimento de exclusão e inferiorização das mulheres que falam esta língua é real, e seu desejo de que façamos escolhas linguísticas mais inclusivas, onde elas cabem, me parece bastante legítimo. Aqui podemos inverter o argumento e perguntar: seria possível viver em uma sociedade não machista usando uma linguagem que é percebida como machista?

  1. Teríamos de mudar o português inteiro se quiséssemos combater o preconceito na língua

Eis uma questão de ordem prática. Realmente, não seria tarefa fácil operar uma transformação sistêmica nas marcações de gênero em toda a língua portuguesa. Não por acaso, os que se dedicam à busca por uma linguagem neutra têm debatido sobre a melhor forma a se adotar – x, e, u, @.

Lembro-me de quando era estudante de Letras Inglês, na década de 1990, e me deparei pela primeira vez com a forma “s/he” num texto acadêmico. Era uma tentativa de se criar uma linguagem neutra, naquele que é um dos raros casos em que o problema do masculino genérico aparece no inglês: o uso do pronome de terceira pessoa do singular.

Imagine o seguinte trecho de um hipotético manual de conduta escolar: “O aluno deve prestar atenção a seu professor. Quando ele estiver falando…” Aqui temos 5 palavras masculinas, usadas no sentido genérico, já que não se referem a uma pessoa em específico: o, aluno, seu, professor, ele. Na língua inglesa, toda essa construção teria uma única palavra com gênero definido, o pronome “ele” (he). Ficaria assim: “The student must pay attention to the teacher. When he is speaking…”.

O que se fez na língua inglesa como resposta às demandas do movimento feminista, que pedia o abandono do masculino genérico? Adotou-se como forma padrão o pronome feminino she. Assim, naqueles casos em que se usava o “ele” genérico, passou-se a usar “ela”, e fim de papo – que inveja dos anglófonos.

Decorre dessa dificuldade operacional que a busca por uma linguagem neutra no português está fadada ao fracasso? Não me parece ser o caso. O debate tem produzido uma onda crescente de aceitação de certas mudanças que apontam na direção da busca por consensos. As novas formas serão absorvidas pela população e se tornarão língua padrão? Só o tempo dirá.

 

Terry Eagleton, filósofo marxista inglês, argumenta que a questão da ideologia na língua é muito mais um problema de uso do que de estrutura, ou seja, não é que as palavras ou a gramática da língua tenham em si mesmas uma carga ideológica, mas que as pessoas as usam de uma determinada maneira. Na prática, separar forma de conteúdo revela-se bastante difícil.

Além disso, isso não quer dizer que não se possa discutir as formas, ou ainda que não seja legítimo mudar a linguagem com que nos expressamos, como reflexo de uma nova concepção das relações humanas em nossa sociedade. Como já dissemos, essa mudança acontece enquanto dinâmica histórica da língua, que se molda à cultura do seu tempo, e muitas vezes passa despercebida.

Quem já passou da casa dos 40, como eu, há de se lembrar de um exemplo claro de como esse tipo de mudança pode acontecer: até meados da década de 1990, expressões explicitamente racistas, que depreciavam pessoas negras, eram socialmente aceitas e de uso corrente em nossa língua. A emergência de uma nova consciência sobre o racismo no Brasil, acompanhada de legislação que criminalizou o racismo, foi responsável por nos livrar de um conjunto de expressões depreciativas – ao menos na esfera pública.

Línguas humanas são produtos das sociedades humanas, e não de um criador alienígena, e por isso incorporam nossas contradições e são palco de nossas disputas políticas e ideológicas. No caso em questão, há um fator determinante nesse cabo de guerra: a biologia. Como os mais velhos morrem antes, no final das contas prevalece a preferência dos jovens. Assim, se quisermos saber para que lado anda a língua, a melhor opção é observar como as novas gerações a estão usando. Como diria Belchior: “Você pode até dizer que eu tô por fora, ou então que eu tô inventando. Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.”

Devo um agradecimento ao colega Eugenio Vinci, que leu e criticou uma versão preliminar deste texto.

Deixo duas dicas: vídeo da linguista Jana Viscardi sobre a questão da linguagem neutra (aqui); palestra da neurocientista Lera Boroditsky sobre a forma como a língua que falamos molda o pensamento (aqui).

* Jeferson Ferro é professor do curso de Jornalismo da Uninter.

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