Vencendo o Atacama sobre duas rodas

Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação Acadêmica

O deserto mais seco do mundo é implacável. Dos breves turistas aos moradores permanentes, passando pelas ousadas fauna e flora da região, resistir ao Atacama é um ato de bravura. São muitos os fatores que fazem da área, de 105 mil quilômetros quadrados, praticamente inóspita. As mesmas condições, no entanto, são o que de mais atrativo o território possui. Pedras e areia compõem a maior parte do horizonte avermelhado.

A oscilação térmica típica de desertos encontra a variação de altitudes que vai de pouco mais que o nível do mar a quase 7 mil metros de elevação. A diferença das montanhas também é notória entre aquelas salpicadas pela neve dos céus e as que guardam o magma da terra. Nesse cenário de contradições uma mesma aventura pode guardar infortúnios e estado de graça em igual medida. Foi o que encontraram dois casais que iniciaram uma jornada a partir de Curitiba.

A capital paranaense vinha de dias com fortes chuvas, prestes a adentrar o novembro mais gelado da sua história. Não era tempo favorável a aventuras, especialmente àqueles dispostos a percorrer milhares de quilômetros sobre duas rodas. Desafiando o mau humor das nuvens e os bloqueios nas rodovias devido aos protestos pelo resultado das eleições presidenciais do dia anterior, Benhur Gaio e a esposa, Lúcia, rumaram de moto a Foz do Iguaçu na manhã de 31 de outubro. O casal de amigos Nelson Castanheira e Neliva Tessaro os seguiam de perto em um Corolla.

Foz seria a primeira parada do percurso que duraria 15 dias, somadas ida e volta, tendo o Atacama como ponto principal da viagem. Da tríplice fronteira, o caminho tomado na manhã seguinte foi com destino a Corrientes, na Argentina. Os 600 quilômetros percorridos neste dia foram mais tranquilos do que os 600 do dia anterior, quando a rota para desviar os protestos nas rodovias resultaram em mais de 500 quilômetros de estrada embebida pelo temporal.

A tensão da largada foi aliviada pelas rodovias argentinas e suas trochas, terceiras pistas que facilitam o vaivém dos veículos. “Um luxo”, nas palavras do reitor da Uninter, que sentia dores nos joelhos pela intensidade na pilotagem. Era necessário robustez para manter a Road King sobre as duas rodas também no terceiro dia da jornada.

A porção argentina do Gran Chaco foi atravessada no trajeto de Corrientes a Termas de Rio Hondo. Os fortes ventos vindos da Antártida são um desafio para a estabilidade da motocicleta. Para o piloto, a passagem de um caminhão no sentindo contrário assemelha-se a um forte empurrão. Eis um belo desafio para atestar a nobreza atribuída aos modelos da Harley-Davidson, em um trecho de um sem-fim de caminhões ao longo de 700 quilômetros de viagem.

As paisagens chaquenhas povoadas por plantações de girassóis, trigo, milho e cabeças de gado davam lugar ao cenário montanhoso de Salta. Ao noroeste da Argentina, Salta alcança a encosta dos Andes. O trajeto até a cidade encontrou leveza graças à segurança da autopista duplicada e à beleza dos montes andinos. O calor e a falta de chuva de novembro permitem a vista dos leitos secos dos rios que descem das montanhas. O panorama da cidade, com quase meio milhão de habitantes, é o da herança de diferentes épocas e culturas: o berço de povos pré-colombianos e a arquitetura colonial espanhola envoltos pelas elevações geográficas.

Apesar de ser a cidade mais desenvolvida do norte do país, os traços ancestrais não dão conta do intenso tráfego e do grande número de pessoas. O trânsito desorganizado ignora o uso de semáforos e placas de passagem preferencial. Mais um desafio para quem já estava no quarto dia de viagem e com 2.300 quilômetros percorridos em uma moto.

Contratempos à vista

O dia seguinte, com parada já no Atacama, se revelaria o mais impetuoso. O destino era San Pedro de Atacama, no Chile, com previsão de tranquilidade na estrada e uma quilometragem razoável. Instrumento de navegação mais confiável da modernidade, o Google Maps haveria de pregar a segunda peça da jornada. A primeira levou o grupo a um trecho de rípio em direção a Salta. A estrada de terra misturada a cascalhos impede a estabilidade da moto, que dança de um lado para o outro. Adrenalina e risco se misturam, mas a prudência exigiu o retorno para o ponto inicial e a retomada do percurso através de uma rodovia.

Novamente indicando um caminho mais curto, e com iguais prejuízos de tempo e estabilidade, a segunda trapaça do Google Maps os enviou em direção à cidade argentina de San Antonio de los Cobres para que então se alcançasse o Chile. A trilha apontada levava a povoados sem postos de combustíveis. Ficar sem gasolina na entrada da aridez do deserto não era uma opção, e mais uma vez foi preciso dar meia-volta até que encontrassem um local para abastecer.

A volta do trajeto rumo ao Chile e ao coração do deserto teve a companhia das belezas naturais da região. Novas montanhas se somavam à extensa galeria de serras observadas nos últimos dias. De cordilheiras nevadas, vegetativas ou arenosas, as mais deslumbrantes surgiam agora. Os milhões de anos necessários para cada morro ser esculpido reservam particularidades anciãs e minerais para cada uma das cores que os pintam do pé ao pico. Elementos como a argila, calcário, chumbo, ferro, cobre, magnésio e enxofre são responsáveis pelo arco-íris pedregoso de rosa, branco, ocre, vermelho e mostarda. Cores da paleta de um artista cuja maior obra são o tempo e a história da Terra.

A continuidade da viagem naquela tarde foi interrompida por seu maior revés. A caminho de Salinas Grandes, as pedras incrustadas na pista e a fina areia que a revestia feito pó causaram a queda do piloto e da moto. Mesmo em baixa velocidade, Benhur levou a cabeça às pedras violentamente. A pancada o fez perder a consciência, e a moto caída sobre o pé esquerdo o prendia no chão. A esposa e os amigos vinham logo atrás no carro e ajudaram o condutor a recobrar os sentidos e a postura diante da moto. A rainha das estradas estava no solo.

O grupo retornou a Salta para passar a noite após o susto. Somente no hotel Benhur tirou a bota para conferir o pé dolorido. Conseguia andar, mas a lateral, próximo à sola, estava atravessada por um edema arroxeado. A dor era suportável e a bota conseguia ser calçada sem grandes complicações, o que permitiu que a viagem fosse continuada na manhã seguinte, mesmo com alterações no percurso.

A lesão seria constatada uma semana adiante, já em Curitiba, como uma fratura no maléolo fibular. Sentia-se em condições para a troca de marchas da moto e, com a ajuda de remédios para a dor, continuou com firmeza a jornada.

O novo trajeto definido os levava a Purmamarca, ainda na Argentina, para que enfim chegassem à porção chilena do deserto. A subida pela Cordilheira dos Andes os levou a um sem-número de curvas fechadas na serra. O caminho era longo e a pilotagem dificultada pela sinuosidade das estradas e o declínio das descidas.

Uma parada no deserto branco de Salinas Grandes levantou receio com a higiene do comércio a céu aberto. O segundo maior deserto de sal do mundo um dia fora um grande lago. A evaporação de milhões de anos deixou o sal e levou a água e, consequentemente, o asseio com os preparos manuais na região. As cólicas que tumultuavam o intestino de Benhur, no entanto, tinham suspeita em outra origem: a salada do dia anterior. Nem o chá da folha de coca, que conjura milagres entre os locais, tratou de aliviar as dores. A prioridade era atravessar a fronteira. O mais rápido possível.

Chegaram ao Paso de Jama, já em território chileno, por volta das 18h. Uma hora de claridade era o que restava daquela tarde. O trajeto em direção ao oeste criava perigosas sombras das montanhas, que escondiam a estrada e cerravam a visão dos viajantes. A altitude cada vez maior e a noite ficando mais escura diminuíam a temperatura, já caracteristicamente baixa na região.

As mãos congelantes clamavam por um par de luvas revestidas. O ar rarefeito foi também responsável por um breve apagão de Benhur na volta, durando três segundos sobre o guidão, e invadindo a pista contrária. Com sorte e buzinadas dos amigos que o seguiam logo atrás, nada grave aconteceu. Reforçada a proteção e descida parte da serra, enfim chegavam a San Pedro de Atacama.

Um oásis no meio do deserto

Chamada de “oásis do Atacama”, San Pedro deve a alcunha a fatores históricos e contemporâneos. A região de Antofagasta, que abriga parte do Atacama ao norte do Chile, serviu de lar para a cultura chinchorra entre 7.000 e 1.100 antes de Cristo. Os chinchorros povoaram o entorno do rio Loa, que nasce nos Andes e atravessa o deserto, e lagos e oásis da puna atacamenha. O povo de costumes caçadores foi também pioneiro na mumificação artificial. Algumas das múmias mais antigas já encontradas na Terra, com cerca de 7 mil anos, foram localizadas no Atacama. Dois mil anos, portanto, antes do início da mumificação no Egito.

A cidade hoje reúne cerca de 4 mil habitantes. Principal porta de entrada às regiões mais remotas do Atacama, San Pedro chega a receber 175 mil visitantes por ano, com boas ofertas gastronômicas, hoteleiras e turísticas. A proximidade com a vida selvagem e formações geográficas como gêiseres e vulcões são atrativos do local com cara de povoado e construções feitas de barro e palha, que se integram aos tons adobe do deserto. O local que reverencia os mortos com sepulturas, decorações e oferendas é o que mais vida apresenta na imensidão de rochas e areia.

A aridez da região é tamanha que chega a ser comparada à superfície de Marte. Não é incomum a Nasa testar protótipos, que serão enviados ao planeta vermelho, no deserto chileno que reúne características físicas e climáticas semelhantes ao do astro a ser explorado. Servir a Terra para o estudo dos céus é também feita de outro modo na região. A limpeza da atmosfera somada à altitude do local fazem do Atacama um dos principais pontos de observação astronômica do mundo, servindo de terreno fértil para o desenvolvimento de pesquisas e centros do tipo.

As inquietantes manifestações naturais do Atacama são grandes pontos de contato com o entusiasmo da existência humana. A região que liga passado e futuro, arcaísmo e tecnologia, vida e morte foi desbravada com êxito pelo grupo de amigos que ousou se aventurar em uma jornada de 12 dias de ida e três de volta, totalizando 6.500 quilômetros de estrada. Defrontando-se com adversidades de diferentes tipos, Benhur, Lúcia, Nelson e Neliva encontraram o que de mais incrível a natureza tem a oferecer, mas sem deixar de lado o atestado de algumas das maiores virtudes humanas: o companheirismo e a resiliência.

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Autor: Arthur Salles - Assistente de Comunicação Acadêmica
Edição: Mauri König
Créditos do Fotógrafo: Acervo pessoal


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