Rádio Uninter amplifica vozes pretas no programa Papo Castiço

Autor: Natália Schultz Jucoski - Estagiária de Jornalismo

Mais que debater o lugar das pessoas pretas na sociedade, é necessário dar voz e espaço a elas nos meios de comunicação. A Rádio Uninter estreou o programa Papo Castiço em 28 de setembro de 2022 com esse intuito. Com dez episódios transmitidos até o momento, a produção aborda temas variados pertencentes à cultura negra, sem deixar de lado a discussão sobre as barreiras impostas pela sociedade.

O encontro com personalidades, profissionais e especialistas pretos é conduzido pela apresentadora Sandy Lylia da Silva, todas as quartas-feiras, às 10h, no canal da Rádio Uninter no Youtube. A palavra castiço significa pureza, castidade, é um adjetivo de boa qualidade e carrega um conceito utilizado em terreiros de umbanda e candomblé. Diversas temáticas foram expostas na primeira temporada do programa. Confira alguns destaques abaixo.

Representatividade negra no jornalismo

A população brasileira consiste em 54% de declarantes pretos ou pardos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e no jornalismo cerca de 20% dos profissionais se identificam da mesma forma. A maioria desses repórteres não aparece em cargos altos, um questionamento que vai além da maneira como as instituições contratam.

Inicialmente, a ideia vem da dificuldade do acesso à educação superior, mas as barreiras são inúmeras em outras tantas etapas da vida. Para a jornalista Aline Reis, coautora do livro Paraná Preto, não é só o jornalismo que precisa de mais representatividade. “Precisamos de mais pessoas pretas em cargos de gerência em todas as profissões e de um acesso em todo os espaços”, afirma.

Um dos motivos dessa questão ser tão profunda e preocupante é que, ao assistir à televisão, a criança não vê pessoas semelhantes a ela e pensa que aquele não é um espaço que possa ocupar no futuro. Quando um programa tem apresentadores negros, aquela criança, que também é preta, se sente representada e estimulada. “Tem muito disso, de você criar espaços para as pessoas negras para que elas se sintam representadas e as novas gerações se sintam estimuladas”, reflete o jornalista e cofundador do jornal Plural Rogerio Galindo.

A maioria das linhas editoriais do Brasil, além de excludentes, ainda são conservadoras e elitistas. Pessoas ricas e brancas parecem não ter interesse em mudar uma sociedade que esteja a favor dos seus privilégios, mas aos poucos este cenário está mudando. O jornalismo comunitário e a imprensa alternativa trazem visibilidade para temas diversificados e, junto com as redes sociais, se tornam ferramentas potencializadoras para a mudança. O público vira o protagonista, já que a internet puxa pautas para que os veículos tradicionais se posicionem de maneira menos excludente. “Existe um movimento porque a sociedade está pedindo isso”, finaliza Aline.

O lugar da cultura negra no Paraná

Uma política de embranquecimento ao longo dos anos defasou alguns aspectos na construção da identidade cultural, sobretudo a negra, no estado do Paraná. “A gente tem muita referência desde a época do colonialismo aqui, desde a arquitetura, instituições museológicas, instituições de galerias, até no fomento dentro da universidade, o que a gente aprende, o que é trazido. São diversas questões em que esse embranquecimento está alastrado”, comenta a produtora cultural Luana Mello, convidada da segunda edição.

A importância de pesquisar assuntos fora da nossa bolha é um passo fundamental para trazer o reconhecimento. Muitas coisas existentes na capital Curitiba são fruto da ancestralidade, mas a maioria das pessoas só conhece aquilo que veio da vertente europeia, como nomes de alguns museus e ruas da cidade. Esse pensamento reforça o apagamento de culturas que não são consideradas o padrão.

Luana, enquanto produtora cultural, percebe que não há tantas pessoas negras em exposições e mostras culturais, com uma dificuldade de identificação. “Preciso trazer um destaque, preciso fazer com que a gente tenha um local onde pessoas pretas se sintam confortáveis para falar. Que as pessoas entendam quem são elas, de onde elas vêm e o quão importante é o papel delas dentro da sociedade e para a cultura”, afirma.

Usar e fortalecer ações afirmativas ajuda a diminuir a diferença racial. As cotas, que entraram em vigor nos anos 2000, são um exemplo disso, como política pública que tenta diminuir a desigualdade racial em instituições de ensino e concursos públicos. Ao fazer uma breve pesquisa nos números de alunos cotistas, Luana percebeu a diferença. “De 2005 a 2020, o número [de estudantes pretos] cresceu muito, principalmente nas cotas raciais, então eu vejo como é importante ter políticas e ações afirmativas dentro da universidade”. O mérito vai também para os coletivos, que atuam em lugares da sociedade que nem sempre o Estado alcança.

A ativista é fundadora do projeto Arte, Vida e Racialização na Contemporaneidade (ARCNT), que surgiu em meio a pandemia de Covid-19 com objetivo de trazer uma conexão na área artística, e faz parte do coletivo Ero Ere, formado por artistas negras.

Piás e gurias do samba de terreiro

O grupo Yebandá saiu dos terreiros de umbanda para tocar nas noites boêmias de Curitiba. A apresentadora conversou com dois integrantes da banda, que contaram suas trajetórias artísticas e peculiaridades de como é levar a cultura africana para a capital paranaense. O vocalista Ber Domingues e o músico Matheus Braga explicaram o sentido do nome da banda, uma homenagem que juntou Iemanjá, a Rainha do Mar e considerada a mãe de todos os orixás, com umbanda, uma religião de raízes africanas. O grupo também é composto pelo músico Rodrigo Spinardi e pelo percussionista Carlos Roberto, mais conhecido na cena musical como Coelho.

A Yebandá toca cânticos sagrados que regem as giras de umbanda nos terreiros, mas adaptadas para outros ambientes, como forma de carregar a ancestralidade e quebrar paradigmas. “União de vários povos, união de várias pessoas, uma reunião ali que a gente vai louvar, vai agradecer, vai pedir, vai festejar. Então a banda toma esse rumo”, ressalta Ber.

O grupo toca todos os domingos, a partir das 18h, no Bar ZéPelin, na região central de Curitiba. Para eles, essa é a melhor forma de começar a semana, um bom momento para celebrar as coisas boas da vida. Existe uma diferença entre tocar no terreiro e tocar em bares, mas isso não faz com eles desanimem, muito pelo contrário: a aderência do povo curitibano é positiva. Matheus comenta que, apesar da região Sul do Brasil ter o maior número de terreiros de umbanda, é visível o embranquecimento nos usos e costumes de uma religião que é originalmente de matriz africana.

A mudança de cenário é importante para a troca de experiências misturando vivências diversas: do terreiro e dos bares. O local usado para louvar os orixás por meio das músicas sagradas acaba por contrastar com o espaço de descontração, se cruzando e se renovando numa sinergia particular. “Uma oportunidade muito boa para quem não é de umbanda, ou quem é, para conhecer um pouco essa musicalidade brasileira. A gente passeia muito nesses ritmos, tradições africanas e indígenas que são o que fizeram a música brasileira ser o que é hoje”, declara Matheus.

Sou negro, sou pardo, sou do tamanho do mundo

A professora e mestra em educação Gisley Monteiro foi convidada para falar das classificações de etnia no Brasil e da importância da reconexão com a beleza negra enquanto resgate de memórias e de todo um pertencimento cultural. Onde está a presença dos negros e pardos no País? Como reestabelecer a conexão com o pertencimento cultural? Para exemplificar, Gisley falou da representação na literatura.

“Ele [negro] nunca é um protagonista, nunca é um herói, sempre é subalterno, subjugado, objetificado”, diz. Machado de Assis é um exemplo de um escritor negro que teve sua identidade embranquecida, inclusive com obras majoritariamente escritas para a elite branca da época. A representatividade deve substituir a representação para que pessoas negras passem a contar suas próprias histórias. A partir do momento em que existe um estereótipo, ele afeta sobretudo as crianças pretas que consomem os vários tipos de meios de comunicação, fazendo com que sua autoestima seja prejudicada já na infância.

É necessário que as escolas falem sobre a cultura afro-brasileira e indígena. A Lei nº 11.645, de março de 2008, é um avanço nesse sentido, ao tornar obrigatório o estudo dessas temáticas nas escolas, para que as crianças cresçam conhecendo e respeitando a diversidade cultural. A professora destaca que existe a preocupação da população negra em ocupar seus lugares de direito, com força e resistência sem mais se calar. São histórias que precisam deixar de estar sob a superfície e se aprofundar, à exemplo da literatura negro afetiva. Segundo ela, é uma das formas de preocupação com o autorreconhecimento das crianças e dos adolescentes perante a valorização da sua ancestralidade.

Algumas políticas afirmativas funcionam como uma ferramenta para que todos tenham acesso aos direitos que deveriam, mas não têm. As cotas são um exemplo de trazer a etnia para dentro das universidades. “O objetivo base de uma política afirmativa é mudar uma mentalidade, uma estrutura, um pensamento. Mudar o pensamento da sociedade com relação a determinado grupo social, a determinado gênero ou religião”, destaca a professora.

Partindo do ponto da cota racial, uma questão controversa foi levantada pela convidada: a diferença entre autodeclaração e o processo de heteroidentificação. São temas delicados que se cruzam entre o autorreconhecimento racial e a análise fenotípica de um candidato autodeclarado preto ou pardo por uma comissão avaliadora. É uma prática que afeta a autoimagem dessas pessoas que acabam por encontrar barreiras ainda maiores na hora de ocuparem os espaços.

É mais do que necessário produzir uma representação genuína e respeitosa para esse público, sobretudo para as crianças negras. Que elas possam crescer se vendo em todos os lugares como centro de algo significativo. “É importante fortalecer essas pautas, dialogarmos de uma maneira leve, sem conflito, sem atritos, mas absorvendo esse conhecimento e compreendendo a importância da história e da cultura afro-brasileira”, finaliza Gisley.

O racismo na ponta da língua

A linguagem é fruto de uma cultura, é algo que perdura pelos anos, mas que também segue viva e em mudança. Por ser a produção de um conjunto de fatores de uma sociedade, as falas refletem em como as pessoas são. Partindo desse princípio, a doutora em estudos linguísticos Maristela Gripp participou do programa para explicar como a língua portuguesa ainda reflete o racismo estrutural presente na sociedade.

“Esse percurso histórico, esse sistema econômico, levou à criação de uma sociedade baseada no preconceito, no racismo, e a linguagem reflete tudo isso”, afirma a professora. É fundamental buscar o conhecimento, pois a partir do momento em que você sabe que determinado comportamento pode ser ofensivo, mas continua fazendo uso dele, é racismo. É preciso reconhecer as falhas da sociedade, sobretudo falar sobre, para poder enxergar e tratar de uma melhor forma as diferenças do mundo.

Expressões e falas racistas estão presentes no nosso português uma vez que toda língua carrega um pedaço da história, mas certos termos devem parar de se perpetuar, já que historicamente tudo o que se relaciona com a população preta carrega uma conotação de negatividade. Vários são os exemplos dessas falas que devem ser substituídas por expressões semelhantes ou por sinônimos, como: criado-mudo, mulata, cor do pecado, pé na cozinha.

Um exemplo de termo que carrega histórico racista desconhecido pela maioria das pessoas é a palavra “doméstica”, que vem de “domesticar”: quando os negros eram retirados de seus lugares de origem para servirem como escravos em outros países, os donos do engenho consideravam eles como selvagens, então era preciso domesticá-los para que pudessem fazer os serviços de casa.

É necessário conhecer a história do nosso país e falar sobre como a linguagem se relaciona com as diferenças. A ressignificação das palavras de cunho racista deve ser exercitada. “A linguagem tem um papel fundamental nesse resgate na medida em que a gente vá procurando produzir uma linguagem que acolha, que respeite as diferenças, que crie laços em vez de criar muros”, finaliza Maristela.

Sofri racismo, e agora?

Justiça por meio da informação. Esse foi o objetivo da conversa com o escritor, advogado, ex-juiz e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, Márlon Reis. Questões sobre como se posicionar legalmente a frente de casos de discriminação racial foram levantadas durante o programa como forma de auxiliar quem já se viu (e ainda presencia) diante dessas situações.

A conversa teve início com o esclarecimento da diferença entre racismo e injúria racial. Enquanto o primeiro é sobre toda e qualquer agressão tanto física quanto moral, o segundo é quando a honra de uma pessoa é ferida apenas por ela ser quem é, previsto no Código Penal. Quando uma pessoa é vítima de discriminação, a principal providência a ser tomada é a de procurar uma autoridade policial e registrar a ocorrência, buscando imediatamente um advogado. “Nós sabemos que a população negra muitas vezes está submetida a situações também de desigualdade social, o que dificulta o acesso a um advogado, mas nesse caso tem-se a Defensoria Pública”, ressalta Márlon.

Outro ponto importante que foi trazido à tona é que, em matéria criminal, o crime de racismo é imprescritível, ou seja, não possui um prazo de validade. Enquanto o agressor estiver vivo, ele pode responder perante a Lei por seus atos racistas. Já as ações civis de indenização têm prazos.

Pessoas brancas também devem atuar como aliadas no combate ao preconceito racial. Um bom exemplo de ajuda eficaz nessa luta é o papel de testemunha. Ao presenciar uma pessoa negra sendo vítima de racismo, a melhor abordagem é registrar o fato para que se tenham provas daquele crime. “Felizmente hoje temos verdadeiras máquinas filmadoras nas mãos de quase todo mundo”, afirma o advogado.

Para ser conquistada, a igualdade demanda luta, demanda reconhecimento de direitos. Discutir um tema tão delicado, mas que diz muito sobre a sociedade, é indispensável. Colocar o dedo na ferida, reconhecer os erros e corrigi-los é essencial para que a igualdade se torne realidade. O convidado também reforçou a importância de espaços para discussão da temática, como o programa na Rádio Uninter. “A população negra está cada vez mais consciente dos seus direitos. Nós não podemos ignorar as sequelas graves do racismo”, finaliza Márlon.

Um doutorado cheio de axé

Nunca é tarde para realizar os seus sonhos. Iyaguña Dalzira, professora e mãe de santo, conquistou o título de doutora aos 81 anos. Intitulado “Professoras negras, gênero, raça, religiões de matriz africana e neopentecostais na educação pública”, sua tese trouxe à tona análises sobre a influência que essas professoras têm ao ensinar seus alunos de escolas públicas. Dez professoras foram ouvidas, sendo cinco de religiões africanas e a outra metade, neopentecostal.

A sua história na universidade começou só depois que formou todos os sete filhos. Com ajuda e incentivo de uma das filhas, Dalzira se inscreveu no vestibular, iniciando os estudos no curso de Relações Internacionais aos 63 anos. “Relações Internacionais é um pouco do mundo. Mas eu gostei porque a curiosidade é muito grande para ler um pouco desse mundo, como que se dá dentro disso, pesquisar também a negritude”, relata. Após a graduação, fez o mestrado aos 72 anos e o doutorado veio em 2022 pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Ela destaca que, apesar das restrições de corpo e mente chegarem junto com a idade, é possível enfrentar os obstáculos, pois não existe um momento certo para iniciar um projeto. Um dos pontos principais que fizeram essa caminhada ser desafiadora é a narrativa de que o idoso enquanto aluno universitário está ocupando um espaço que deveria ser de uma pessoa jovem.

Além de mais velha, Dalzira é uma mulher preta, convivendo também com a questão do racismo. Parte de seus professores desacreditaram de seu potencial, somado à falta de identificação com colegas de sala, criando assim uma barreira na hora de dividir conhecimento. “Foi difícil, porque teve professora também que teve preconceito dentro de si. Eu era a única aluna mulher negra, ialorixá (mãe de santo) […] Parece que você sempre está oferecendo um perigo quando as coisas não dão certo, o que não é verdade”, reflete.

Para ela, a maior importância da conquista do doutorado é que ele foi uma busca da vida inteira. Ter a possibilidade de mostrar a força e a coragem do povo negro, que pode e consegue reescrever a própria história, é a base da esperança de ser uma agente transformadora por meio da fala. É uma conquista que não é apenas pessoal, mas também da sociedade e da comunidade do terreiro. Vivemos em um mundo de trocas constantes, ensinando e aprendendo ao mesmo tempo.

A ialorixá destaca a importância do acesso à informação sobre as religiões de matriz africana em primeiro lugar. O descaso e o racismo não podem mais ser considerados como desconhecimento acerca delas. A motivação para seguir estudando, mesmo com uma barreira de idade instaurada pela sociedade, é sua vontade de transformar a sociedade por meio do conhecimento. “Que a gente continue vivendo, aprendendo, compartilhando e fazendo a nossa história, contando a nossa história”, finaliza.

Incorporar HTML não disponível.
Autor: Natália Schultz Jucoski - Estagiária de Jornalismo
Edição: Arthur Salles - Assistente de Comunicação Acadêmica
Créditos do Fotógrafo: Reprodução YouTube


Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *