Quando a sala de quimioterapia revela uma advogada

Autor: Sandy Lylia da Silva – Estagiária de Jornalismo

O pulsar automático da execução das tarefas da nossa agenda pode ser afetado pelo sentido da impermanência. Reconhecer o transitório, os ciclos, os prazeres e dissabores da vida é um exercício diário. O ponto de virada na existência de muitas pessoas vem por meio de vivências negativas, como a de experimentar uma dor, um trauma ou uma doença, eficientes despertadores da mudança.

O poder das provações do cotidiano forjam nosso caráter e personalidade, deixando rastros de resistência e resiliência. A trajetória de Izabel Cristina de Freitas Prado, assistente de operações acadêmicas da Uninter, é exemplo disso. Aos 54 anos, depois de trilhar uma áspera trajetória, ela desfruta de uma das conquistas mais respeitadas entre os bacharéis de Direito: a aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Avó, mãe, esposa, mulher, filha, todos esses papéis formam Izabel. São vários os recortes que formatam o livro da sua vida: a infância marcada pela rigidez e violência materna, a fuga de casa na adolescência, os três casamentos, os dois filhos, a descoberta tardia da deficiência auditiva, a revelação de sua adoção no leito de morte de sua mãe e ainda o enfrentamento do câncer de mama. Caçula de quatro irmãos, a paulista radicada em Curitiba reconfigurou sua história transpondo cada pedra que se apresentou no seu caminho até tornar-se advogada com o juramento na OAB no último dia 12 de julho.

Quando uma habilidade ganha o nome de surdez

Izabel pensava ter um dom, uma habilidade especial de escutar as pessoas com atenção plena, sem a captação de ruídos ambientais, pois era assim que percebia os diálogos desde criança. Essa tônica, foi perdendo significado ao longo de seu crescimento, e foi na vida adulta que caiu por terra.

“Você, por acaso, finge que não me ouve quando está de costas, Izabel? Já pensou em ver se não é surda?”. A pergunta lançada em 1998, período que trabalhou como digitadora no Centro de Educação a Distância Poty Lazarotto (CEAD), ressoou forte na vida de Izabel.

“Eu achava que tinha uma habilidade, que eu era a mulher maravilha, pois eu conseguia direcionar minha atenção para uma pessoa de cada vez, fazia até leitura labial de forma espontânea, eu desligava do resto. Se estava em casa e alguém falava quando eu estava de costas, e eu não entendia, ficavam chateados e não repetiam. A dúvida que ficava no ar entre todos, era se realmente eu não estava ouvindo”, afirma ela.

Após o diagnóstico de perda auditiva bilateral, ela ressignificou todos os episódios de surras que sua mãe lhe aplicou na infância por não realizar o que era mandado, pois não ouvia as ordens dadas. “Minha mãe me batia principalmente no rosto, ela dizia que era para eu sempre lembrar do castigo quando olhasse no espelho. Eu naquela época, não entendia nada, mas depois do diagnóstico tardio de surdez, tudo ganhou novo sentido”, recorda Izabel.

Foi somente a partir de 2014 que conseguiu se adaptar como os aparelhos auditivos e tocar seu dia a dia com maior qualidade. “A adaptação ao aparelho auditivo interno não foi fácil, tive náuseas, dores de cabeça, ouvia minha própria voz ao falar, o que me irritava muito, tinha até medo de sair com o aparelho. Como minha perda auditiva é progressiva, a adaptação era mais difícil, hoje, com o novo aparelho e acompanhamento fonoaudiológico, me adaptei super bem e não vivo sem ele”, comenta.

Izabel acessou o ensino superior atendendo a um chamado latente para um novo recomeço, a superação de um câncer de mama. Bolsista integral do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), graduou-se em Direito na Uninter, com muitas dificuldades, em meio a um verdadeiro sobe e desce existencial.

Superou dois divórcios, criou seus filhos Nádia e Helerian em uma ciranda de recomeços. Na roda da vida, contou com amparo de seu avô, de sua primeira sogra e de amigas, cada um dando suporte em momentos diferentes.

Entre os anos de  2001 e 2016, já com a vida mais estável, desenvolveu maior experiência profissional trabalhando em escritórios de advocacia especializados em negociações financeiras para clientes inadimplentes.  “Trabalhei mais de quinze anos nesta área, passei por várias funções, desde teleatendente de cobranças até líder de equipe. Meus colegas de trabalho brincavam comigo me chamando de doutora Izabel, pois era uma funcionária coringa. Em meados de 2004, encontrei meu atual companheiro, Antônio, trabalhávamos na mesma empresa. O chamo de anjo, devido ao apoio que recebi dele no período mais difícil que enfrentei, o tratamento contra o câncer. Estamos juntos até hoje”, diz ela.

O abraço que apontou o câncer

Na trajetória de Izabel, um gesto de carinho foi revelador de um dos maiores desafios que já enfrentou.

No seu aniversário de 45 anos, em 28 de janeiro de 2013, ela recebeu um forte abraço de parabéns do filho Helerian. Neste momento, sentiu uma pontada e o afastou rapidamente.

Prestou maior atenção e percebeu um caroço em sua mama, o que levantou um grande alerta em meio à comemoração. “Eu não tinha o hábito de ir a médicos, fazer exames periódicos, nada disso. Quando fui procurar auxílio profissional já estava em um nível mais avançado”, relata ela.

O tratamento iniciou em abril de 2013 e durou pouco mais de um ano. Foram 18 seções de quimioterapia, cirurgia oncológica e radioterapia.

A oncologia virou escritório de advocacia

O episódio que se seguiu foi desafiador, mas contribuiu para escrever um novo capítulo. As complicações e os efeitos colaterais das modalidades de tratamento contra o câncer levam os pacientes a perderem capacidade de exercer suas funções normalmente, trazendo problemas emocionais, sociais e financeiros. Nem todos sabem que a Constituição da República Federativa do Brasil garante direitos sociais específicos para as pessoas com esse tipo de patologia, o que auxilia em muitas questões práticas que os afetam.

Izabel acompanhou de perto essa realidade. As vivências compartilhadas despertaram nela um desejo de orientar os demais pacientes oncológicos. As salas de espera do Hospital Erasto Gaertner, instituição de saúde localizada em Curitiba, especializada no tratamento de pacientes com câncer, virou um reduto de esclarecimento de direitos sociais dos pacientes. Quando se deu conta, estava dando os primeiros passos da carreira de advocacia em meio às agulhas, medicamentos, enfermeiras e médicos. Ela esclarecia direitos básicos de pessoas que já se encontram fragilizadas por todo contexto de luta contra a doença e ainda passavam por privações devido ao desconhecimento das políticas públicas.

“Como os tratamentos eram muito demorados, tínhamos bastante tempo para conversar. Fui conhecendo as histórias de vida das demais pacientes, suas dificuldades e medos. Questão de não perder as tão importantes caronas, retornar ao trabalho mesmo passando mal, a falta de medicações e recursos financeiros, sendo que muitas coisas seriam supridas se elas corressem atrás dos seus direitos”, explica Izabel, que persiste em seu tratamento até hoje, com acompanhamentos periódicos.

Segundo a  Lei nº 8.922, de 1994, o trabalhador cadastrado no FGTS, que tiver câncer ou que tenha dependente com câncer, tem o direito de realizar o saque do  Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).  A Resolução nº 1, de 15/10/96 do Conselho Diretor do Fundo de participação do PIS/Pasep, autoriza a liberação do saldo das contas do Programa de Integração Social (PIS) e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP) pelo paciente ou trabalhador que possuir dependente com câncer, desde que na fase sintomática da doença.

Já a Lei nº 8.213, de 1991, garante o Auxílio-Doença para pacientes temporariamente incapazes de exercer suas atividades laborais  por mais de 15 dias consecutivos a partir do primeiro dia de afastamento. Há ainda a Lei nº 14.238, de 19 e novembro de 2021,  que instituiu o Estatuto da Pessoa com Câncer, trazendo outras providências para assegurar e promover condições de igualdade no acesso ao tratamento adequado e o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais destes pacientes.

O desafio da recolocação profissional após o enfrentamento do câncer

O local de trabalho pode ser regenerador após a superação de um câncer. Retomar a rotina diária dos compromissos exige planejamento extra para garantir conforto e segurança nessa transição. “Mandei muitos currículos, mas as pessoas pareciam ter medo de me contratar devido ao histórico da minha doença. Por esse motivo comecei a procurar outras áreas”, recorda.

Por meio de um mutirão de empregos para pessoas com deficiência (PCD) da Universidade Livre para a Eficiência Humana (UNILEHU), conheceu Silvia, da área de Recursos Humanos da Uninter. Nessa ocasião, teve acesso à oportunidade de uma colocação, mas que não foi efetivada à época.

Vendeu docinhos, sanduiches, realizou panfletagem e fez o possível para manter seu dia a dia universitário. Ingressou em uma vaga de estágio, pois sua graduação em Direito estava caminhando bem, mas pouco tempo depois veio a sair.

Na mesma semana, Silvia a chamou para uma entrevista em nova vaga na Uninter. Desde janeiro de 2018, faz parte da instituição. “Fui promovida depois de um ano, recordo que estava na época de apresentação do meu trabalho de conclusão de curso (TCC). Trabalhar na Uninter é como estar no paraíso, tenho muito trabalho, mas estou no céu!”, elogia Izabel.

Aprovação na prova da OAB

“Me senti em uma série que chegou ao fim da temporada. Vivi um capítulo por vez na esperança daquele final feliz, mas consciente que poderia haver tropeços. Um dia entrei na sala da professora Dinamara muito nervosa, chorando, e  despejei meus problemas de TCC, função nova e outras dificuldades pessoais. Ela me perguntou tranquilamente: ‘Você sabe o que quer fazer? Não faça nada se não sabe, se acalme’. Parece bobo, mas depois disso as coisas fluíram”, diz ela.

A diretora da Escola Superior de Educação da Uninter, Dinamara Pereira Machado relata que  Iza, como carinhosamente a chama, “é uma daquelas mulheres empoderadas, que recebe da vida ventos diversos e continua sempre buscando qualidade de vida. Presenciamos na ESE sua luta por formação, desde a venda de chocolates para ajudar na manutenção do curso, ou ainda, o momento do aceite do seu juramento. Um futuro sendo construído no presente. À luz da democratização da história da Izabel, buscamos redesenhar novos degraus em sua vida”.

Diante dos novos capítulos que a esperam, Izabel demonstra aquele sentimento de animação de quem sabe que muitas novas histórias estão por vir. “Hoje sei que tenho muitas possibilidades, mas entendendo que o tempo está curto. Confio que tudo que passei foi muito valioso e acredito que ainda posso aprender. Vivo um sentimento de alívio acompanhado do… e agora?! ai meu Deus!”, conclui a nova advogada.

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Autor: Sandy Lylia da Silva – Estagiária de Jornalismo
Edição: Larissa Drabeski


16 thoughts on “Quando a sala de quimioterapia revela uma advogada

  1. Bom dia! Conheço essa grande mulher a mais de 30 anos, nesse tempo nos tornamos comadres e muitas vezes vi de perto suas dificuldades mais desde àquela época ela já era corajosa. Enfrentou todos os desafios com coragem e determinação. Tenho muito orgulho de ser sua amiga e de ser madrinha do Helerian.
    Ela é uma grande inspiração pra todos nós.

  2. Guria do céu!! Que exemplo maravilhoso de vida você é!!! Não sabia dessa sua história de vida, é intensamente emocionante, pois reúne todas as nuances de sentimentos, mas que serviram de impulso para chegar onde está hoje!!! Sempre te admirei e agora mais ainda, minha querida. Rogo a Deus, que sua luta continue sendo regada de bençãos e glórias Grande bjo Muita saúde, paz, realizações, felicidades e alegria de viver sua nova caminhada!!!

  3. Quanta sensibilidade da jornalista!! Escreveu o texto com tamanha competência que conseguiu resumir em palavras a espetacular e linda história da Bel. Transmitiu a pessoa incrível que ela é em todas as nuances: forte, guerreira, doce e delicada!!!! Que orgulho dessa história! Que honra ser amiga dessa pessoa tão nobre !!!!!!!!! Que o mundo saiba quem é Izabel Cristina de Freitas Prado! Parabéns!!

  4. Ah que orgulho dessa amiga tão linda que o tempo de trabalho na Uninter me deu… a Izabel é maravilhosa! Sou muito feliz por conhecer essa linda mulher com essa história incrível, que só foi possível pq ela é fantástica! Parabéns Iza…

  5. Izabel é uma mulher muito lutadora a qual dou parabéns por sempre correr atrás dos seus sonhos!

    A historia da Izabel é incrivel e relatada pela Jornalista Sandy ficou fantástica!

    Sucesso para as duas!

  6. Izabel linda!!
    Acho que vc não faz ideia do quão especial vc foi pra mim nesse tempo que tivemos juntas.Uma pessoa com o coração lindo, que transborda amor, carinho, paz e muita risadas por onde passa.Uma pessoa unânime e guerreira que lutou com todas as forças por suas lutas que teve no seu caminho. Estamos muito orgulhosos de vc sisssss.
    Vc merece todas as homenagens!!
    Um grande beijo de sua amiga que hoje mora fora e nunca esqueceu de vc!

  7. Aah que história!

    Merece cada conquista, cada reconhecimento por sua dedicação.

    Agradeço a Sandy que conseguiu com carinho e respeito escrever sobre a jornada dessa poderosa que é minha mãe!

  8. Relendo os trechos da minha vida, aprendo a cada leitura um pouco mais dos porquês, e tudo, ou quase tudo faz sentido. Eu me esforcei sim, corri atrás do que eu precisava e não só por mim, más pelas vidinhas que coloquei no mundo. Sem mencionar os detalhes vividos, sou grata por ter sido adotada. Contudo, sou imensamente grata a Deus e por todas as pessoas que passaram pela minha história até o momento, não posso citar nomes, pois foram muitas mesmo, tenho certeza que cada uma sabe o quanto representam na minha trajetória.
    Enfim, fica hoje o meu agradecimento para a Professora Dinamara, por confiar no meu potencial e não cortar as minhas asas, rss, ao contrário só me deu apoio, e, agradeço a “Sandy Lylia, por colocar cuidadosamente os meus 54 anos em alguns parágrafos com tanto carinho. Hoje como operadora do Direito, faço questão de dizer que “Todos são iguais perante a lei” e, merecem respeito para viver com dignidade, ressaltando que cada um tem a sua história de vida e a sua luta.
    Nada é por acaso.

  9. Parabéns Bel! Você é uma mulher maravilhosa e guerreira, merece as glórias e alcançar ainda mais sucesso!
    Fico muito feliz em poder ter te conhecido!

  10. Minha amiga linda e maravilhosa, de quem eu já sentia orgulho pelo pouco do que sabia de você. Continuo pedindo a Deus que abençoe sua vida e de sua família . E não esqueço das suas palavras quando disse que estava pedindo a Deus por você. E você me respondeu tão serena. SABE QUE NUNCA PEDI NADA A ELE SÓ AGRADEÇO! Foi uma grande lição para mim. Tinha certeza que você seria uma vencedora, pois em momento alguém te ví desanimada . SUPER ORGULHOSA DE VOCÊ AMADA . Desejo tudo de melhor em sua vida, pois você merece tudinho. QUE DEUS TE ABENÇOE GRANDEMENTE. Super beijo, um abraço carinhoso ❤

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