Medicina, o trote e a elite no Brasil

Autor: Maristela R. S. Gripp (*)

Temos acompanhado estarrecidos o que acontece nos bastidores de algumas universidades de Medicina pelo país. Estudantes universitários, na sua grande maioria, oriundos de famílias abastadas, submetem os calouros a trotes violentos e humilhantes. A cena de jovens correndo nus, enquanto uma partida de vôlei acontecia, foi de estarrecer a população. Na sequência, outros vídeos foram enviados à imprensa, revelando eventos tão ou mais escabrosos perpetrados pelos alunos mais velhos contra os calouros.

O que vem ocorrendo nessas faculdades nos faz questionar que tipo de pessoas são essas que estão estudando para serem médicos e, o mais preocupante de tudo isso, que tipo de profissional está sendo formado e como. Dados da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) revelam que mais da metade dos alunos aprovados nos cursos de Medicina são de família em que um dos pais ou os dois são médicos ou têm parentes médicos. Ainda de acordo com a fundação, os sinais externos de riqueza dos acadêmicos sugerem candidatos de origem da classe média, maioria brancos e que fizeram seus estudos iniciais em escola particular.

O curso de Medicina é um dos mais tradicionais e antigos do país – a primeira faculdade foi criada na Bahia, em 1808. É reconhecidamente um dos vestibulares mais disputados do país nas instituições públicas e privadas. Nas faculdades privadas, as mensalidades podem facilmente ultrapassar os R$ 15 mil por mês, sem incluir os demais gastos. Esse valor acaba sendo reservado àqueles que têm uma situação financeira mais favorável.

Há investimento pessoal na formação acadêmica de um médico. Afinal, são alguns anos de estudos, com dedicação integral do acadêmico, impedindo-o de ter uma ocupação para se manter durante o curso. Por isso, durante o período de curso, cabe à família sustentar e manter o estudante. Os que se formam são tratados com deferência pela sociedade e deles se espera um comportamento diferenciado. No juramento, o futuro médico promete integridade, humildade e profissionalismo ao longo do exercício da sua carreira, pois vai lidar com o que há de mais precioso e sagrado: a vida humana.

Diante de tudo isso, o que diria Hipócrates, conhecido como o “Pai da Medicina Ocidental”? Ele iria se deparar com as cenas aterrorizantes às quais assistimos praticadas por futuros médicos, filhos de pessoas de boa situação financeira e do bem, que em breve estarão a cuidar de pessoas na saúde pública ou privada. Nem Hipócrates poderia prever o que aconteceria com uma das áreas mais exclusivas do conhecimento humano.

As faculdades de Medicina envolvidas nos escândalos dos eventos recentes se manifestaram, por meio de suas assessorias, repudiando a violência dos atos e se colocando à disposição para as investigações. Entretanto, os próprios alunos dos cursos envolvidos disseram que os trotes violentos e abusivos não são um fato isolado, para espanto nosso. São eventos que ocorrem frequentemente com o conhecimento das instituições, embora todas repudiem.

Pouco foi feito até o momento. Algumas universidades já se manifestaram contrárias à expulsão desses alunos. Eles vão continuar seus cursos, no máximo serão advertidos e tudo será tratado como “arroubos da juventude”. Vão passar uns dias sentados “virados pra parede” e retornarão às aulas como se nada tivesse acontecido.

Diante disso, é preciso que a sociedade se posicione e passe a fiscalizar mais de perto o projeto pedagógico e humano desses cursos de Medicina, mas, principalmente, é preciso questionar: quem estamos formando para cuidar da saúde da nossa população?

*Maristela R. S. Gripp é doutora em Estudos Linguísticos, psicopedagoga e professora do curso de Letras da Uninter.

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Autor: Maristela R. S. Gripp (*)
Créditos do Fotógrafo: hugovk/Flickr


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