“Gênero é performável, como uma dança”
Autor: Igor Horbach Carvalho - estagiário de jornalismo
“O que a nossa comunidade traz? Tem festas, lugares, momentos e ações de resistência para existir e reexistir”. A declaração do produtor cultural e pesquisador Giovanni Cosenza evidencia um tema que poucos se debruçam no ambiente acadêmico e que, também por isso, se faz tão necessário: a cultura LGBTQIAPN+ como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Durante o programa Pajubá, transmitido pela TV Uninter no dia 18 de julho, o pesquisador afirma que a questão nasce da percepção de que a binaridade em gêneros é algo criado pela ciência e, portanto, não se trata de algo biológico. “O que a sociedade diz que é feminino e o que é masculino?”, reflete.
Cosenza explica que o gênero não pode ser visto como um bloco de concreto imutável, mas sim, algo com fluidez, que se contrapõe ao sistema binário criado pela sociedade: “Quando falamos de performatividade de gênero, estamos falando dessa transição […]. Gênero é performável, como uma dança, e que a gente pode moldar”.
Ou seja, isso define o que a sociedade lista como características e ações de cada sexo. Batons, maquiagens, estilos de roupas foram colocados como algo feminino. Gravata, terno, pelos e pigarros já são compreendidas como coisas masculinas. “Se a gente pega um homem do século XVII da França e coloca na frente de um homem de hoje, ele vai pensar que é uma drag queen”, exemplifica.
“Como a gente identifica a nossa comunidade?”, questiona Cosenza ao abordar o surgimento dessa reflexão e debate. A partir das experiências de pessoas LGBTQIAPN+, e como as relações entre eles são construídas, se faz um saber cultural. “Isso não é só fato jornalístico, mas histórico na literatura também”, conta ele ao citar Jorge Amado e Cassandra Rios, grandes nomes da literatura brasileira que trazem personagens da comunidade.
Giovanni afirma que marchas e paradas LGBQIAPN+ devem ser consideradas como patrimônio imaterial do Brasil, além dos blocos de carnaval que possuem forte presença em sua essência a comunidade. “Se a gente tem esse reconhecimento para outros grupos, também precisamos brigar para acontecer com a cultura LGBTQIAPN+[…] Não existe hierarquia de minorias, precisamos pensar que todos foram minorizados por uma sociedade capitalista e agora é importante transgredir isso”.
O convidado ainda explicou a importância de se pensar no contexto judiciário e legislativo em prol da comunidade. “A gente não tem uma Lei federal reconhecendo o casamento homoafetivo, o preconceito etc., temos um reconhecimento pelo STF [Supremo Tribunal Federal] […], mas depende de quem está lá”, diz Giovanni sobre o problema da falta de representatividade na câmara e senado, e o quanto essa realidade de avanços no STF pode mudar, além do limite de atuação do próprio órgão.
Pela primeira vez na história do Brasil, existem duas parlamentares transgênero, as deputadas Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), que atuam na representatividade e atuação em prol da comunidade, mas “não adianta a gente votar em Erika Hilton, e não pensar em quem vai sentar do lado dela. Temos 513 cadeiras, não vão ser duas pessoas que vão fazer acontecer”, alerta.
Pautas importantes como cota para LGBQIAPN+ são pensadas e olhadas pelos parlamentares, seja em qualquer esfera – municipal, estadual e federal – da própria comunidade. Giovanni explica a necessidade disso a partir do apagamento histórico realizado pela própria sociedade. “São pessoas que tiveram privação da sua educação, que se descobriram cedo e foram expulsas de casa. Como a gente pode querer que uma adolescente tire notas boas se depois da escola ela vai para a rua?”, ressalta.
A partir disso, Cosenza traz o conceito de cidadania cultural, quando há uma identidade cultural de um local ou de grupos. “O que é cultura para esse local? Por exemplo, existem coisas especificas de cada região do nordeste. Nem tudo é da região. […] Frevo é de Pernambuco, não é do nordeste inteiro”, explica. Partindo disso, o pesquisador fala sobre o grupo poder produzir a cultura a partir do que eles vivem: “É uma cultura de festa, de saber, de onde se encontra e como aquele grupo perpetua”.
Dentro da própria comunidade, há uma cultura que é perpassada de tempos em tempos. “Uma drag queen não nasce do nada. Tem uma troca de conhecimento e referências culturais que são passadas um para os outros”, pontua.
Para desmistificar o conceito de gênero binário, Giovanni traz o contexto histórico do Brasil como propagador e influência disso, a partir da Inquisição vivenciada pelas sociedades tradicionais e que foram colonizadas por Europeus. “Quando falamos de ‘liberdade, fraternidade e igualdade’, é para eles, não para nós”.
A Inquisição no Brasil, fortemente financiada pelo meio religioso da época, era o julgamento de pessoas que não seguiam o que os europeus viam como algo positivo. O contexto, segundo o pesquisador, parte do lugar de que a sociedade precisava procriar para que houvesse a conquista de território. “Não era só culpa da igreja, mas também da ideia de conquista daquele território. Não se conquista e mantém um pedaço de terra com dois homens e um cachorro. Precisa de uma sociedade ali”.
Além da ideia da imposição do medo como método de controle, também influenciou o período de inquisição, onde uma pessoa podia ser punida se não denunciasse o “crime”, como conivente. Ou, poderia se beneficiar com algo da sociedade.
“A gente vê isso acontecendo até hoje com a questão de ‘tirar o outro do armário’. E algo que precisa ser descoberto pela sociedade. A ideia dessa fofoca, do mau dizer, é um reflexo dessa época”, afirma. Isso, porque toda a cultura dos povos tradicionais, sobretudo sul-americanas, evidenciam a existência de um terceiro gênero.
“Todas as comunidades tinham um terceiro gênero. Se você não se identifica como homem ou mulher nos afazeres, você pode seguir o do sexo oposto. Por exemplo, encontra-se muitos relatos de mulheres indígenas que eram caçadoras”, explica como a performance de gênero também está no processo histórico.
Por fim, Giovanni lista a importância do agrupamento, sobretudo para aqueles que ainda estão vivenciando o momento de descoberta de si. “Um bom caminho é sempre se juntar, trocar ideias, informações com pessoas da nossa comunidade”, sugere.
Autor: Igor Horbach Carvalho - estagiário de jornalismoEdição: Larissa Drabeski
Revisão Textual: Nayara Rosolen
