Diferentes em suas lutas e vivências, pessoas transgênero e intersexo se encontram na busca por respeito e dignidade
Autor: Nayara Rosolen - Analista de Comunicação
Novembro é um mês que marca diferentes lutas por direitos humanos. Duas delas se encontram na mesma sigla, a da comunidade LGBTQIAPN+, mas é fundamental entendê-las como vivências distintas, para garantir visibilidade e evitar desinformação. A data de 8 de novembro celebra o Dia da Solidariedade Intersexo, enquanto o dia 20 lembra o Dia Internacional da Memória Transgênero.
Ambas as experiências revelam e se encontram em desafios comuns: a invisibilidade e as violências que atravessam corpos e identidades fora do padrão tradicional do que é considerado “homem” ou “mulher”. O que torna ainda mais importante essa distinção, para que nenhuma existência seja apagada ou silenciada.
Mayara Natale é uma mulher intersexo que luta pelos direitos da comunidade. Ela viu nascer a Associação Brasileira Intersexo (ABRAI) e representou a entidade no Grupo de Trabalho (GT) Intersexo da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa LGBTQIA+, vinculada ao Ministério do Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Com uma filha também intersexo, a busca por uma vida mais digna ganha um propósito ainda maior.
Alliny Vasny é formada em Letras Português-Inglês pela Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) e acadêmica do curso de Jornalismo da Uninter. Como mulher transgênero, precisou lidar com diversas formas de transfobia ao longo da vida, dentro e fora de casa. E, ainda hoje, como cabeleireira em seu salão de beleza próprio, vivencia a discriminação.
Tanto Mayara quanto Alliny contam que a violência começou cedo, ainda dentro de casa, onde deveriam encontrar acolhimento. A falta de informação, o medo e o preconceito familiar abriram caminhos para outras formas de desrespeito e constrangimento.
Pessoas intersexo nascem com variações corporais, sejam físicas ou biológicas, que não se enquadram nas expectativas biomédicas tradicionais do “masculino” ou “feminino”, construídas socialmente. Enquanto pessoas trans se identificam com uma identidade que não corresponde ao gênero atribuído no nascimento.
Dessa forma, cada uma das pautas, uma de saúde e a outra de identidade de gênero, tem suas demandas específicas, que devem ser reconhecidas para a geração de debates e implementação de políticas públicas efetivas para as determinadas populações. Pessoas intersexo enfrentam desafios ligados principalmente à saúde e autonomia sobre o próprio corpo, que, muitas vezes, passa por procedimentos invasivos já no nascimento. Enquanto pessoas trans lidam especialmente com o reconhecimento da identidade na qual se reconhece e a legitimação social das expressões de gênero.
Na escola, essa realidade encontrada dentro de casa se repetiu para Mayara e Alliny. A falta de preparo e a ausência de educação humanizada criaram ambientes hostis, lembrados pelo bullying, discriminação e exclusão. Para elas, a educação poderia ter sido uma ponte para o acolhimento, um espaço para naturalizar diferentes corpos e identidades, reduzindo preconceitos a partir do conhecimento. Mas não foi assim.
Essas experiências deixaram marcas que as acompanharam ao longo da vida e afetam direitos básicos, como saúde e trabalho. No caso de pessoas intersexo, a violência pode começar ainda durante a gestação com pressões médicas e decisões invasivas sobre seus corpos, muitas vezes sem consentimento. A falta de preparo dos profissionais de saúde e a inexistência de protocolos específicos resultam em procedimentos traumáticos. Para pessoas trans, o atendimento ainda encontra preconceitos e falta de acolhimento e conhecimento acerca da saúde física e psicológica, o que afasta muitas do sistema de saúde.
De acordo com Alliny, embora o Sistema Único de Saúde (SUS) seja referência no mundo todo, os profissionais não estão preparados. Isso quando existe uma unidade direcionada a pessoas transgênero que são ainda mais escassas no interior do país. Além disso, muitas das pessoas trans mal sabem que têm direito ao atendimento gratuito a sessões de psicoterapia, por exemplo. A situação se agrava quando percebem que essa questão é muito anterior aos postos de saúde, e vem já da formação profissional.
Mayara explica como pessoas intersexo passam por essa experiência:
No mercado de trabalho, a situação também é desigual. A evasão escolar causada por violências constantes reduz oportunidades, e o preconceito em entrevistas de emprego e no ambiente profissional cria barreiras para que essas tenham acesso à autonomia e independências financeira.
Professor de disciplinas da pós-graduação em Direitos Humanos e Movimentos Sociais da Uninter, Toni Reis é fundador do Grupo Dignidade e demonstra a necessidade de disciplinas, em todos os níveis de educação, sobre diversidade e respeito às individualidades, além da formação continuada de profissionais.
Toni reafirma que a evasão da educação reflete diretamente nas oportunidades de emprego e no tratamento destes profissionais nas organizações ou empreendimentos próprios. O profissional lembra que o trabalho é um dos fins previstos nas diretrizes e bases da educação nacional (Lei nº 9.394/1996). Alliny relata que, mais de uma vez, clientes com horários agendados chegaram ao seu salão e quando a encontraram deram desculpas para cancelar o atendimento.
Diante disso, todos reforçam a necessidade de políticas públicas efetivas, tanto para garantir atendimento em saúde e acesso digno à educação, quanto para promover empregabilidade e proteção contra discriminação. Para Mayara e Alliny, a visibilidade não pode ficar restrita às datas: precisa ser acompanhada por ações concretas que assegurem direitos e cidadania.
As causas de pessoas trans e pessoas intersexo, em todas as respectivas especificidades, estão relacionadas diretamente com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3 Saúde e bem-estar, 4 Educação de qualidade, 5 Igualdade de gênero, 10 Redução das desigualdades e 16 Paz, justiça e instituições eficazes.
Portanto, nesse cenário, não só as autoridades, mas a mídia também recebe o importante papel de não apenas transmitir informações verídicas e quebrar a desinformação, especialmente produzida por meio de notícias falsas, mas também dar espaço para corpos dissidentes, o que contribui para naturalizar essas vivências e para a identificação de tantas outras pessoas que passam pela mesma realidade.
Alliny finaliza ao afirmar que pessoas transsexuais precisam se esforçar o dobro do que pessoas cisgênero para alcançar o que querem, em qualquer área da vida. Mulheres trans, ainda mais, pois atravessam uma interseccionalidade maior relacionada ao gênero. Mas que isso não deve ser um ponto de estagnação para que essas pessoas caiam na marginalização, o que muitas vezes deseja a sociedade. Por isso, a importância de uma data como o Dia Internacional da Memória Trans, para jamais esquecer o que fizeram as que vieram antes.
Mayara destaca que a busca por dignidade não se faz sozinha e se fortalece através de contribuições coletivas de aliados, não só da própria comunidade. Portanto, o Dia da Solidariedade Intersexo traz à tona não só a necessidade de todas as pessoas lutarem pelos direitos dessa população, mas dar espaço para que essas pessoas possam narrar e construir a própria história, através da representatividade que ultrapassa os estigmas.
Autor: Nayara Rosolen - Analista de ComunicaçãoEdição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Arte de Willow Linhares Nunes
