A menina que não se dobrou à tirania da contingência

Autor: Vitor Diniz - Estagiário de Jornalismo

As dores do crescimento cobraram de Ivana uma carga além do suportável. Ainda criança ela foi apresentada à inevitável tirania da contingência, descrita por Philip Roth no clássico Nêmesis. Mal ingressada na vida, Ivana já iria se deparar com a força do imponderável que se impõe aqui e ali com toda sua carga de eventos aleatórios capazes de frustrar sonhos e expectativas.

Aos 9 anos, já havia enfrentado as restrições de visão e de mobilidade, a perda de uma irmã ainda bebê e o suicídio do pai. Ela sempre sentou na primeira fila na sala de aula não porque fizesse questão. Com alto grau de miopia desde os 6 anos, ainda tinha problemas ortopédicos que a obrigavam a usar um aparelho de ferro na hora de dormir e botas especiais durante o dia todo. Isso em uma cidade quente como Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde nasceu.

Miúda, raquítica mesmo, nem das aulas de educação física podia participar com as outras crianças, o que impunha mais dificuldades de se relacionar com os colegas da escola. “Pensa no Mister Magoo raquítico. Essa pessoa era eu”, lembra aos risos. Como se deduz, Ivana não era exatamente a menina mais popular do Colégio Estadual Leonel Franca. Ao contrário, era tímida e introspectiva. Mas havia os primos, com os quais se divertia à beça na chácara da avó tirando leite das vacas, correndo, subindo em árvores.

De repente, a tragédia. O suicídio do pai, o servidor público Milton Saes, virou do avesso a vida de todos. Assim, do nada, a professora de matemática Odete Dultra Saes se viu sozinha para cuidar e consolar a filha Ivana e o caçula Milton Junior, à época com 4 anos. Havia ainda os outros a julgar. A cidade era pequena, década de 1960, as pessoas se conheciam, paravam para conversar, compartilhavam acontecimentos da vida própria e alheia. Isso sempre causava desconforto, sobretudo depois do ocorrido com o pai. “Em todos os lugares que eu fosse, era lembrada como a filha de tal pessoa, de certa forma isso me fazia ficar introspectiva, quieta”, diz Ivana.

A morte de Milton foi o ponto de inflexão na vida de todos. “Isso mudou alguns aspectos da minha vida, inclusive a condição financeira da minha família. Essas situações fizeram com que eu me tornasse uma pessoa exigente comigo mesma”, diz. A tragédia do pai e as restrições físicas da infância moldaram o que Ivana tomaria como filosofia de vida. “Isso me talhou a vontade de sempre querer estudar mais do que os outros, sempre me impulsionou a procurar conhecimento, e ser mais aplicada nas tarefas”, descreve. Ela encontrou refúgio nos estudos e passou a entender que sua maior missão seria cuidar das pessoas, e assim foi driblando a tirania da contingência.

Sempre muito aplicada nos estudos, ela se destacava nas disciplinas de matemática, física e química. Mas chegou uma hora em que os sonhos da agora adolescente Ivana não cabiam mais nos limites de Paranavaí. A faculdade local dispunha de poucas opções de cursos superiores, então em 1980 a mãe, que era professora da rede estadual de educação, pediu transferência para trabalhar em Curitiba, entendendo que essa era a melhor maneira de proporcionar mais oportunidades de estudo para a filha. E lá se foi toda a família morar na capital paranaense.

O sonho realizado na capital

Em Curitiba, Ivana e o irmão ingressaram em uma escola particular. Como o ensino médio na época era profissionalizante, Ivana optou por cursar análises clínicas. Durante as aulas, ela teve a oportunidade de aprender as atividades que são realizadas em laboratórios clínicos. “Isso me levou para a área da saúde. Tempos depois, optei por odontologia, porque na época era uma profissão que oferecia muita visibilidade no mercado de trabalho, e também porque sempre gostei de atividades manuais”, explica.

Em 1983, ingressou no curso de odontologia da PUC-PR. Sem condições de pagar as mensalidades, ganhou uma bolsa-trabalho (remuneração para alunos que realizavam trabalhos relacionados ao curso. “Trabalhei desde o primeiro ano da faculdade para pagar o curso, trabalhei no Hospital Cajuru. No posto, fazia atividades administrativas, e ali eu via o cuidado que o hospital tinha com as pessoas, a importância das relações interprofissionais, multiprofissionais”, explica. Para completar o valor da mensalidade, Ivana vendia produtos de beleza e fazia estágio.

Ivana não pensava em montar um consultório particular. Logo após a formatura, prestou um concurso público para trabalhar na prefeitura de Curitiba. Aprovada, começou a trabalhar na rede municipal de saúde municipal como cirurgiã dentista, em 1988. Além de se dedicar ao funcionalismo público, levando saúde à população, nas horas vagas trabalhava como dentista no consultório particular do professor e Léo Kriger.

Mesmo na vida adulta, o traço da curiosidade ainda a acompanhava, e a cirurgiã dentista não perdeu a sede de adquirir conhecimento. Muito dedicada à profissão, logo começou a trabalhar em setores gerenciais. Foi chefe de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), e com o passar dos anos alcançou um dos cargos mais altos do serviço público municipal, tornando-se superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, o que hoje seria equivalente ao cargo de vice-secretária.

“Fui muito feliz por ter ajudado a construir o sistema de saúde de Curitiba através dos diversos cargos que ocupei. Fui diretora, superintendente, entre outras funções. Tive o privilégio de fazer passeata em Brasília garantindo o direito ao dinheiro para manter o SUS. Participei dessa história da construção do SUS”, lembra com orgulho. Os cargos ocupados durante a carreira a fizeram ir para o caminho da gestão de saúde. Fez três especializações, em odontologia, saúde coletiva e administração pública.

Seguindo outros caminhos

Mais de 25 anos atrás, Ivana Maria Saes Busato começou a dar aulas em cursos de pós-graduação ligados à Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter), um dos embriões que dariam origem ao Centro Universitário Internacional Uninter. “Sou muito grata à instituição, nessa época viajei o Brasil todo dando cursos de pós-graduação. Quando comecei como professora da Uninter, diminuí minha carga horária na prefeitura para me dedicar ao mundo acadêmico. Hoje sou aposentada do funcionalismo público, mas ainda mantenho amizade com diversos colegas que estão trabalhando na prefeitura, e sempre que posso ajudo como voluntária em eventos públicos de saúde”, diz.

Chegou um momento da carreira profissional em que Ivana sentiu-se obrigada a tomar uma decisão que iria mudar totalmente a rota na qual ela vinha caminhando. Com 20 anos completos na carreira de cirurgiã dentista, ela decidiu cursar o mestrado, e depois o doutorado, completando sua transição definitiva para a área da docência no ensino superior. “Como sempre fui servidora pública municipal, tinha para mim que um dia eu deveria devolver para a sociedade o conhecimento que obtive dentro do funcionalismo público. Para conseguir isso, escolhi a educação do ensino superior”, relata.

Um hobby? Motociclismo

Desde 1984, quando ainda namorava o rapaz que três anos depois viria a se tornar seu marido, Ivana já gostava de andar de moto. Ela e o marido, o servidor público municipal João Francisco Busato, sempre cultivaram a paixão pelo motociclismo. Mas a vida de casados, os filhos, os compromissos familiares e financeiros, fizeram com que os dois deixassem esse hobby esquecido no tempo. Anos depois, o marido, que trabalhava na área de finanças da prefeitura de Curitiba, se aposentou.

Os filhos do casal chegaram à vida adulta, se formaram no ensino superior. Ivana, apesar de continuar trabalhando na Uninter, já estava aposentada do funcionalismo público. Foi aí que ela e João Francisco resolveram comprar uma moto e ingressar em grupos de motociclistas ligados à marca Harley-Davidson. “Já fizemos viagens de moto, fomos para Montevidéu no Uruguai, e também fizemos viagens dentro do Brasil. Nesse período de pandemia não estamos participando de eventos, mas antes da pandemia todos os sábados nós saímos de moto e fazíamos passeios por perto de Curitiba”, conta.

Um dos acontecimentos marcantes relacionados ao hobby foi a viagem aos Estados Unidos. Para comemorar o aniversário de 25 anos de casamento, o casal percorreu a famosa Rota 66, viajando cerca de 800 km por dia. Foram 15 dias sobre duas rodas, passando por São Francisco (Califórnia), Las Vegas (Nevada), Los Angeles (Califórnia), entre outros lugares. “É bem interessante, eu viajo sempre na garupa, e viajar na garupa é ter confiança na pessoa que está pilotando. Viajar de moto aumenta a percepção, a gente sente o cheiro do ambiente, o clima, a temperatura, é diferente de quando viajamos no carro”, relata.

Pandemia e trabalho home office

Para a profissional que passou 30 anos da sua vida levantando cedo todos os dias para trabalhar numa jornada diária de 10 horas, divididas entre a prefeitura e o consultório, foram desafiadores os primeiros meses de trabalho em home office, no início da pandemia. “Foi difícil diferenciar os horários de trabalhar, os horários de cuidar da casa, do momento de dar atenção para a família. Sinto falta do convívio com as pessoas dentro da Uninter, sempre gosto muito de conversar, de ter o convívio presencial com os colegas e amigos, fazer confraternizações”, salienta.

Impedida de fazer as viagens de moto, Ivana passou a se dedicar às atividades manuais, e uma delas é o crochê. Ela fabrica amigurumis, pequenos bonecos de crochê feitos a partir de técnicas japonesas, e depois oferece como presente para crianças. Ivana encontrou na produtividade a solução para a ansiedade e preocupação que estavam sendo causadas pelo isolamento social. “Temos que buscar novas coisas para fazer nesse momento de isolamento social. Eu sempre digo que a gente veio ao mundo para ser feliz, e todos os dias eu luto para isso acontecer. Tenho um bom relacionamento com a família, com os animais de estimação, e gosto de cuidar de plantas, cultivo várias orquídeas em minha casa”, pontua.

Além de produzir bonecos de crochê, ela também escreve poemas, entre outros tipos de textos. Seu objetivo agora é reunir essas obras que estão guardadas e escrever um livro. “É muito bom compartilhar as experiências que a gente teve na vida, e chegamos onde chegamos justamente para estimular os nossos ouvintes, os nossos alunos, e também fazê-los ter sonhos, metas, desafios, e também aprender com nossos percalços, com nossas dificuldades”, diz. Essa é mais uma maneira que ela encontrou de mostrar que uma vida feliz é aquela vida que está pautada na produtividade, independentemente de qual seja a área profissional.

Atualmente, Ivana Busato é coordenadora dos cursos de Gestão Hospitalar e Gestão de Saúde Pública, na Escola de Superior de Saúde da Uninter. Para conhecer mais da história de vida de Ivana, assista ao programa Memória Viva da Rádio Uninter clicando neste link.

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Autor: Vitor Diniz - Estagiário de Jornalismo
Edição: Mauri König
Revisão Textual: Jeferson Ferro


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