O paradoxo brasileiro: menos fome, mais gente nas ruas

Autor: Relly Amaral Ribeiro*

O Brasil comemora um marco importante: saiu do mapa da fome da ONU e atingiu o menor nível de pobreza da série histórica do IBGE. À primeira vista, parece uma vitória incontestável. Mas, ao caminhar pelas cidades, surge uma contradição: nunca houve tantas pessoas vivendo nas ruas. Como explicar esse cenário?

Segundo levantamento da UFMG com base no CadÚnico, cerca de 335 mil brasileiros estão em situação de rua, mais que o dobro dos 144.777 registrados em 2019. Isso significa que aproximadamente 1 em cada 606 brasileiros não tem onde morar. O perfil predominante é revelador: 84% são homens, 69% negros e 70% adultos entre 30 e 59 anos. Não estamos falando apenas de números, mas de vidas que estão sem emprego, moradia e dignidade.

Aqui está o ponto central dessa contradição: estar em situação de rua não significa necessariamente estar passando fome. Graças à solidariedade da sociedade e da rede de proteção social — com Centros Pop, restaurantes populares e programas municipais — essa população pode ter acesso à três refeições diárias. É isso que explica a saída do Brasil do mapa da fome mesmo com uma significativa população em situação de rua. A fome extrema foi mitigada, mas a exclusão social persiste — e cresce.

Por que, então, as ruas estão cada vez mais cheias? A resposta envolve múltiplos fatores: reflexos da pandemia do COVID, exigências do mercado de trabalho, dificuldade de acesso às políticas habitacionais, insuficiência de programas de reinserção social e aumento do custo de vida.

Entre 2019 e 2025, o Brasil enfrentou uma escalada significativa nos preços, refletida pelo IPCA acumulado no período, que ultrapassou 30%, com picos de inflação em 2021 (10,06%) e reajustes contínuos nos anos seguintes. Esse movimento impactou diretamente o orçamento das famílias: moradia, alimentação e transporte tornaram-se os principais vilões. Aluguéis subiram acima da inflação geral, enquanto itens básicos como arroz, feijão e proteínas registraram aumentos expressivos. A alta das tarifas de serviços essenciais, como energia elétrica e água, reforçou a pressão sobre os gastos domésticos.

Como consequência, o poder de compra caiu drasticamente. A pesquisa Genial/Quaest indica que 81% dos brasileiros afirmam ter menos capacidade de consumo do que há um ano. Já o estudo do LCA Consultores mostra que, na última década, a fatia do rendimento necessária para adquirir uma cesta básica passou de 21% para mais de 26%. Essa perda não é apenas estatística: ela redefine hábitos, reduz acesso a bens e serviços e aprofunda a sensação de insegurança econômica, mesmo em um cenário de indicadores macroeconômicos aparentemente estáveis.

Dessa forma, muitas pessoas não conseguem pagar aluguel, mesmo trabalhando, e acabam empurradas para a vulnerabilidade. Some-se a isso problemas familiares, perseguição de facções criminosas, questões de saúde mental e dependência química — muito presentes naqueles que vivem nas ruas e que exigem políticas integradas e de longo prazo.

Outro aspecto preocupante é a naturalização da exclusão. A sociedade parece ter se acostumado a ver pessoas dormindo em calçadas, como se fosse parte do cenário urbano. Essa indiferença é tão grave quanto a própria desigualdade, pois legitima a ideia de que não há solução.

O que fazer? Abrigos temporários não bastam. É preciso investir em moradia popular, programas de saúde mental, capacitação profissional e combate ao racismo estrutural, já que a maioria das pessoas em situação de rua é negra e acaba este fato por si só já aumentar a exclusão. Sem isso, continuaremos celebrando indicadores que não refletem a realidade.

Em síntese, sair do mapa da fome é um avanço, mas não pode servir como cortina para esconder outras crises. O Brasil precisa enfrentar a desigualdade em todas as suas dimensões. Enquanto isso não acontecer, as ruas continuarão sendo o retrato mais cruel das nossas contradições.

 

*Relly Amaral Ribeiro é assistente social e professora dos cursos de pós-graduação na área de Serviço Social e Políticas Sociais do Centro Universitário Internacional Uninter.

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Autor: Relly Amaral Ribeiro*
Créditos do Fotógrafo: Rodrigo Leal/Banco Uninter e MART PRODUCTION/Pexels


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