“Um lugar de fala não é suficiente”

Autor: Nayara Rosolen - Jornalista

Foi no território dos Kambeba, na região de São Paulo de Olivença (AM), que nasceu Resaité, em 1979. Em uma época marcada pela censura, a indígena foi registrada com o nome civil, Karina da Costa Santos, e teve como a primeira língua o português. A língua e a cultura de seu povo eram transmitidas apenas à noite, pela avó Potiraçu, ou Delma Ribeiro (no registro civil). Sempre aos sussurros, para que os não-indígenas não percebessem o que acontecia. Uma memória profunda e que marca sua identidade.

Quando criança, ouviu de um colega de escola que a língua nativa que falava era “feia”.  Deste dia em diante, Karina, que cresceu muitas vezes inferiorizada e desprezada por sua etnia, dedicou-se a transformar todo o conhecimento para se empoderar e hoje trabalha pra dar voz e pertença aos povos originários, por meio da educação.

A mestranda em Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) conquistou a vaga de professora em um edital da Uninter destinado especificamente para profissionais indígenas e, ao lado da professora Gisley Monteiro, assume a disciplina de Relações Étnico-raciais africana, afro-brasileira e indígena para estudantes de todos os cursos do centro universitário.

“Como uma instituição privada, acredito que a Uninter se torna uma vanguardista. Com uma disciplina que faz parte do contexto de todos os cursos, deixa claro qual perfil quer, qual educação almeja e faz. Não só de fantasia, mas que aconteça de maneira verticalizada. A Uninter faz com que isso aconteça, e faz a diferença na educação. (…) Quero transmitir a verdade da questão indígena, porque eu percebo que nós enquanto indígenas fomos estudados por muitos não-indígenas. Dizerem por mim não é o mesmo que eu dizer pela experiência que tenho”, garante Karina.

Karina acredita ser necessário agregar visões diferentes do mundo para que se tenha uma sabedoria ampla também de outras culturas. Dessa forma, a docente pensa ser possível começar o movimento de inclusão efetiva de indígenas nas instituições não apenas em sala de aula. E de forma consciente, já que para ela, “um lugar de fala não é suficiente” se esse sujeito não tem consciência dos anseios que almeja enquanto agente político. “A gente preza muito por isso”, afirma.

Natural de Corumbá (MS), Gisley adentrou o mundo acadêmico por meio da música. Desde pequena, o pai, Antônio, tinha o desejo de que ela e os irmãos tivessem acesso à cultura. Por isso, aos cinco anos de idade começou a estudar instrumentos como teclado, piano e órgão.

Mestra em Educação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Gisley tem como foco de pesquisa questões da literatura negra, políticas públicas e temáticas das relações étnico-raciais no Brasil. Aos 36 anos, diz que durante toda a formação desde a infância teve acesso apenas a literaturas europeias. “Não contam a nossa história, você acaba não se sentindo representado”.

Para a profissional, ler Lima Barreto foi um divisor de águas. Mas essa busca e os descobrimentos e percepções que encontrou ao se ver como uma mulher negra, aconteceram de forma individual, “em pequenas doses”. A procura pelo autoconhecimento, por meio da literatura, foi o que trouxe a elaboração desse processo. Por isso, agora ela encara o papel dentro da disciplina com um principal objetivo: que os estudantes saiam sabendo dialogar sobre a temática étnico-racial.

“Acho muito importante trabalhar com uma professora indígena, porque para além dos conhecimentos acadêmicos, o lugar de fala, de pertença, soma muito dentro das discussões acadêmicas. Não apenas contar pelo olhar do outro ou pelas leituras, mas a partir das vivências. Isso fortalece muito mais e acho que é um diferencial da Uninter”, afirma Gisley.

A disciplina de Relações Étnico-raciais acontece na modalidade de educação à distância (EAD) e está na grade de todos os cursos da instituição. A diretora da Escola Superior de Educação, Humanidades e Línguas (ESEHL) e idealizadora, Dinamara Machado, explica que são sete aulas gravadas no formado de seminário, com profissionais convidados externos. As professoras Karina e Gisley atuam, então, em debates ao vivo, nos quais se comunicam com todos os estudantes da Uninter, a cada começo de fase do curso.

Embora a disciplina já estivesse presente no centro universitário desde o surgimento da legislação, a diretora pontua que a transformação deste novo momento é concretizar o conhecimento a partir das professoras com representatividade, que trabalham, lutam, vivenciam e pesquisam a temática.

Dinamara atua em questões da diversidade e do respeito, incluindo as étnico-raciais, há pelo menos 25 anos, sendo nove deles em gestão na Uninter. É mais uma ação de políticas afirmativas que têm sido desenvolvidas para a construção de uma sociedade com novos pensamentos, a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Para a profissional, uma cidadania sustentável passa pelos direitos humanos.

“A contratação da Karina foi uma vitória. Quando ela chegou aqui, me emocionei. Porque não é trabalho de um dia, e não é por causa de uma legislação. É pelo respeito ao lugar de fala. Nesta disciplina, não temos um branco que não viveu, falando a respeito disso. Tenho profissionais, pesquisadoras, com lugar de fala. É uma alegria estar vivendo o júbilo de toda uma luta, toda uma conquista”, salienta.

A diretora espera que as profissionais contribuam cientificamente com suas pesquisas e tenham uma perspectiva de política motivacional. “Que todas as pessoas consigam olhar e dizer ‘eu sou capaz, tenho um lugar ao sol, posso buscar, vou ser contratado, eu sou respeitado, tenho condições’. É mostrar que essa instituição respeita todas as pessoas dentro de suas particularidades, que respeita todos os povos. É uma mensagem, além de tudo, motivacional”.

Em maio deste ano, a Uninter também realizou um vestibular na aldeia guarani Pindoty, na Ilha de Cotinga, baía de Paranaguá (PR). A instituição concedeu cinco bolsas integrais de licenciatura a cinco indígenas da etnia Mbyá Guarani, em uma parceria com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Escola Estadual Indígena Pindoty.

“Hoje a nossa flecha é a caneta e o papel”

Karina acredita que os indígenas hoje precisam “estar com um pé na aldeia e outro na cidade”, em uma interculturalidade. Aprendendo a cultura do outro, mas nunca deixando de ser quem é. “Não deixamos de ser quem somos por usar celular, por falar a língua portuguesa. Nós consumimos para nos tornarmos algo maior. No começo da colonização, os indígenas utilizavam flecha para se defender e garantir a sua cultura. Hoje a nossa flecha é a caneta e o papel, está centralizada na educação”, reforça a docente.

Não é por acaso que a trajetória de Karina esteve sempre voltada para projetos sociais e de ensino. Aos 12 anos de idade, saiu do território dos Kambeba para morar no convento das Irmãs Missionárias Capuchinhas (IMC), ainda em São Paulo de Olivença. Na época, era a única maneira de sair para um contexto de educação maior.

Lá, passou mais de uma década e compara a experiência com a que os homens têm de ir para o exército. Fez todo tipo de trabalho pesado, desde a cozinha até a criação de animais. Mesmo que à noite estivesse exausta, era como podia garantir a continuidade dos estudos. Com as irmãs, também teve a oportunidade de visitar outros países, como o Equador e a Angola, sempre para trabalhos sociais.

“Sou muito grata a elas pelo que eu aprendi. Naquele momento, eu verificava como o povo africano é muito parecido com os nossos costumes indígenas, inclusive de fazer comida no fogo de lenha, no chão. Foi uma troca cultural muito boa”, lembra.

Aos 15 anos, conseguiu entrar para o Instituto de Educação do Amazonas, em Manaus (AM), uma escola voltada para a formação de professores no magistério. No contraturno, trabalhava como professora auxiliar nas salas do maternal até o 3º período, que hoje é o 1º ano do ensino fundamental, na escola Dr. Adalberto Valle, também das IMC. Assim, Karina morou com as freiras até os 22 anos.

Em 2000, retornou ao território para trabalhar como voluntária na alfabetização de estudantes indígenas em língua portuguesa, mas não parou por aí. Karina prestou vestibular para Letras e se formou no ensino superior. Voltou para a cidade já ultrapassando fronteiras do preconceito e do estereótipo. Começou a atuar no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) como coordenadora. Algo inédito, uma indígena em um local comissionado, de confiança.

Foi também no CRAS que vivenciou um momento marcante. Ouviu um dos atendentes desprezando uma indígena de seu povo, que duvidava da origem por não falar a língua nativa. “Como era proibido, muitos aprenderam apenas a língua portuguesa. Muitos tiveram a oportunidade de se identificar como indígena pela autodeclaração, mas não conheciam a língua”, explica. Naquele momento, mesmo sem a autonomia e segurança que possuiu hoje, Karina acolheu e atendeu a mulher. A vivência ficou “martelando” na cabeça da profissional e surgiria alguns anos mais tarde, em uma outra etapa da vida.

Nove anos depois de voltar a suas terras, ingressou como professora na Escola Estadual Nossa Senhora da Assunção, com foco nos indígenas do ensino médio que moravam na cidade. Poucos anos depois, ainda teve a oportunidade de trabalhar na revitalização da língua de seu povo, com a cacique geral, Eronilde Kambeba, que na época já fazia o mestrado.

“Vitalização linguística é quando uma língua está morta e queremos dar vida, mas entendemos que a nossa língua não está morta. Tem várias palavras, alguns verbos, e estamos revitalizando, colocando mais vida no que temos, desde 2012”, explica.

Dez anos depois da atuação como professora na escola, mais um marco. Karina era gestora em 2020, quando a instituição completava 100 anos de existência. “Foi um sonho que consegui alcançar, junto com o de trabalhar com a formação do povo indígena”, afirma.

O mestrado surgiu em um momento de crise. A docente perdeu o pai, Apoenã, ou Antônio dos Santos no registro civil, durante a pandemia da Covid-19. Ao perder sua “referência de vida”, Karina entrou em depressão. Deixou de ir para a escola por um mês e os filhos, Railen Kassio e Raina Monay (Purantá e Potira para os indígenas), ficaram “de lado”. No entanto, foi Railen quem incentivou e inscreveu a mãe no mestrado da UFFS.

“Vou ver no que dá”, pensou ela ao passar pelo processo seletivo e se mudar para Chapecó (SC). “Literalmente me resgatou, porque eu esqueci o momento de luto. Juntei minha vontade de estudar e trazer junto a visibilidade do meu povo. Por isso está na minha pesquisa e com certeza, se eu fizer, estará no meu doutorado”, conta.

Karina está fazendo “valer muito” do que seu povo passa por não conhecer a língua étnica, como a mulher que conheceu no CRAS, por meio da pesquisa “Fala tua língua Kambeba: Português étnico falado pelos Omáguas da Terra Indígena Tuyuka Tawá em São Paulo de Olivença-AM”. A defesa da dissertação está prevista para novembro deste ano.

A docente soube da vaga na Uninter pelo irmão, em uma divulgação que aconteceu na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba (PR). Karina acredita que “era pra ela” e diz que desde o momento que pisou na instituição foi marcada pela boa receptividade e acolhida. Para a profissional, chegar na Uninter é ter “um protagonismo que muitos indígenas não tiveram”.

“Infelizmente, o Brasil nunca pensou em ter um povo indígena, apesar de sermos originários brasileiros. Sempre fomos vistos como alguém que deve ficar à margem, que não deve aparecer, e só aparece quando é para fazer alegoria, uma folclorização da nossa cultura. Isso é muito pequeno em relação a tudo que os povos indígenas são”, salienta.

Para Karina, a inclusão deve acontecer em todos os aspectos. Não só com a entrada de indígenas na graduação, mas com a presença deles também na docência e em cargos de gestão. A professora ainda acredita que “a sociedade só é equilibrada e justa quando há respeito” e “respeitar é não ir além do que pode ou conhece”.

“Não só em relação a cultura indígena, mas a vivência do homem de modo geral, que quando começou a caminhada rumo ao desenvolvimento, perdeu a humanidade. A gota que move a humanidade é o amor, e o amor está representado de maneira bem simples no respeito. É preciso que a sociedade de modo geral volte atrás e procure onde deixou cair o respeito. Daí não vai ter a violência, nem a questão das minorias sempre apanhando”, pontua.

Karina é a convidada do programa Conversa com o Reitor do dia 06 de outubro de 2023, com a temática “Docência intergeracional: da formação clássica à contemporânea”, transmitido pela Rádio Uninter.

“Acesso à educação de qualidade é a base”

A humanidade junto com a solidariedade, afeto e paixão é o que Gisley também acredita que está faltando para que a sociedade se fortaleça a partir da escuta e do diálogo, capaz de gerar reflexões, compreensões e aprendizado.

“O acesso à educação de qualidade é a base para que negros e indígenas fortaleçam seu lugar de fala. E esse lugar seja carregado de conhecimento e entendimento. Muitas pessoas negras no Brasil têm essa autoimagem prejudicada, se sentem inferiores, não capazes de atingir determinados patamares sociais, principalmente por algo que está no psicológico, por causa desse nosso passado histórico”, complementa a professora.

Antes de ingressar no curso de Letras da UFMS, a profissional fez conservatório de música e já havia atuado no Moinho Cultural do Instituto Homem Pantaneiro (IHP). No primeiro ano da graduação, passou em um concurso público da cidade para a Secretaria da Cultura e atuou em projetos como tecnóloga, a princípio com foco apenas na música e depois em projetos de literatura. Começou no âmbito infantil, depois para os clássicos, literatura brasileira, até chegar em obras de autoria negra.

“Fui me aprofundando mais com aquilo que eu trabalhava até então e não sabia que é a literatura negra, não via especificamente. Eu via como literatura, mas gostava particularmente de autores negros”, lembra.

O mestrado em Educação Social, também pela UFMS, foi concluído em 2016, no qual pesquisou a implementação do ensino de música na sala de aula. No mesmo ano e ainda na universidade federal, foi orientadora de projetos de pesquisa na especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social.

Gisley passou 11 anos na Secretaria de Cultura e começou a alternar os projetos com a prática da docência em curtos períodos de seis meses a um ano, assumindo aulas. Até que, em 2018, abriu processo para o Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (IFMS), no campus Corumbá. No IFMS, foi professora no departamento de Linguagens e se tornou membra do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI), entre 2019 e 2022.

“Na graduação, não tinha muita vontade de trabalhar com ensino, acho que isso se fortaleceu quando entrei para o Instituto Federal, porque é um perfil de público que me atraiu querer ensinar. Não só com conteúdo, mas iniciação científica e projeto de pesquisa. Isso fez com que eu me interessasse pelo ensino nessa estrutura, onde me senti mais à vontade”, conta.

Lá, não só teve a oportunidade de realizar cursos voltados para a questão de políticas públicas para racismo e banca de heteroidentificação, como também ministrou cursos de formação acerca do feminismo negro e participou de bancas de heteroidentificação. Com a pandemia, a docente começou a trabalhar de forma remota e viajou à Curitiba para passar um período com o irmão. Durante a estadia, surgiu o processo seletivo para professor de língua portuguesa e linguística na área de Linguagens e Sociedade na Uninter.

Na segunda colocação do processo e com todo o trajeto percorrido até novembro de 2021, Gisley recebeu outra proposta, trabalhar com a disciplina de Relações Étnico-Raciais, depois de aplicar na prova didática da instituição a linguista e escritora Conceição Evaristo, assim como a ancestralidade dentro das linguagens. No mês seguinte, também entrou como tutora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) para trabalhar no curso de extensão Letramento Racial Crítico, linha em que acredita.

“Acreditamos que se combate o racismo no cotidiano, que temos que fazer intervenções para que as pessoas compreendam e modifiquem seus comportamentos. Mesmo em políticas públicas, como a de cotas, que as pessoas dizem ser contra… Temos que entender que políticas são momentâneas, não definitivas, porque a intenção básica é uma mudança de mentalidade. A partir do momento em que se conseguir essa mudança, não há mais necessidade dessas políticas. Porque haverá entendimento do direito, do respeito, da igualdade”, destaca.

Gisley diz que percebe o quanto as pessoas pretas não conseguem dialogar sobre suas próprias narrativas, sua história, direitos que são fundamentais, sobre a luta que trava diariamente contra o racismo. Por isso, a importância de a disciplina apresentar essas discussões. “A formação brasileira é toda eurocêntrica”, ressalta.

“Quando você se vê enquanto sujeito negro e começa a se atentar que as discussões meritocráticas são uma falácia dentro da realidade que vivemos dentro do Brasil, de desigualdade, percebe o que foi podado na infância e adolescência. Enquanto mulher negra, eu senti isso dentro da literatura e ampliou meu pensamento, principalmente a minha crítica pessoal voltada para essa percepção do sujeito negro dentro da sociedade”.

Embora entenda que o conteúdo é sensível, porque no Brasil muitas vezes o racismo “é disfarçado”, a docente garante que as aulas são um espaço de aprendizado e é importante que os estudantes se sintam à vontade. “É o momento em que vamos cometer erros, mas é importante fazermos essas correções em relação a nomenclaturas, conceitos, expressões e entendimentos básicos”, conclui.

A professora também é autora da rota de aprendizagem de Literatura de Autoria Negra na Uninter, realizou palestra no Instituto IBGPEX acerca da Diversidade Cultural brasileira relacionada ao mundo do trabalho e organizou o 1º Simpósio Intercultural para o estudo das Relações Étnico-Raciais, Africana, Afro-brasileira e Indígena do centro universitário. Em outubro de 2022, Gisley ainda foi convidada do programa Papo Castiço, com a temática “Sou negro, sou pardo, sou do tamanho do mundo”. Agora, a docente prepara o projeto do doutorado já na área étnico-racial.

Incorporar HTML não disponível.
Autor: Nayara Rosolen - Jornalista
Edição: Larissa Drabeski


Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *