Feminicídio e femigenocídio sob a lente de uma sociedade patriarcal

Autor: Maria Vitoria Alves Silva - estagiária

Em 2023, o Brasil registrou 1.463 casos de feminicídio, a maior marca desde a promulgação da Lei do Feminicídio em 2015, com uma média alarmante de quatro mulheres assassinadas por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Esses números são um reflexo de uma violência sistêmica e crescente, que continua a ceifar vidas de mulheres de todas as idades, desde as mais jovens até as idosas. O cenário é ainda mais preocupante quando se observa que as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero sofreram cortes significativos nos últimos anos, comprometendo o atendimento a mulheres em situação de risco e dificultando o trabalho de organizações que tentam mitigar esse problema. 

O feminicídio é definido como o homicídio de mulheres motivado por questões de gênero, geralmente cometido por parceiros íntimos ou pessoas com quem as vítimas têm uma relação de confiança. Esse crime é uma das manifestações mais extremas da violência de gênero no Brasil. Entretanto, o conceito de femigenocídio, proposto pela antropóloga Rita Laura Segato, vai além, caracterizando o extermínio de mulheres como parte de uma violência impessoal e coletiva, que não se limita às relações interpessoais, mas envolve uma lógica mais ampla de dominação patriarcal, muitas vezes apoiada por estruturas de poder e coletivos organizados. O femigenocídio inclui, assim, assassinatos cometidos não apenas por indivíduos, mas por grupos que agem coletivamente em um contexto de opressão, onde as vítimas são selecionadas simplesmente por pertencerem à categoria social “mulher”. 

Segundo o artigo Feminicídio e Femigenocídio: Relações de Proximidades e Distâncias, de Amanda Caroline Generoso Meneguetti e Angela Couto Machado Fonseca, publicado na Revista Ius Gentium (2024) da Uninter, tanto o feminicídio quanto o femigenocídio são expressões de uma violência sistemática e naturalizada contra as mulheres, sustentada por uma estrutura patriarcal profundamente enraizada. O estudo reforça que a violência de gênero é sustentada por uma cultura de desvalorização e subordinação dos corpos femininos, e que a morte de mulheres, seja por feminicídio ou femigenocídio, é o ponto culminante de um ciclo de opressão histórica que começa muito antes do ato de violência. A sociedade, em grande parte, não apenas tolera, mas também naturaliza esse tipo de agressão, o que contribui para a falta de ação efetiva no combate a esse fenômeno. 

Entre 2019 e 2023, o Brasil viveu um período de cortes drásticos em políticas públicas que apoiam vítimas de violência de gênero. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revelou que programas essenciais, como o Ligue 180 e a Casa da Mulher Brasileira, sofreram uma redução de até 94% em seus orçamentos, deixando milhares de mulheres sem acesso a apoio psicológico, jurídico e emergencial. O impacto desses cortes se reflete diretamente no aumento de casos de feminicídio, pois a falta de infraestrutura e serviços adequados impede que muitas mulheres tenham a proteção necessária para escapar de situações de risco. O número de feminicídios em 2023 demonstra a gravidade dessa situação, e destaca a urgência de uma mudança na forma como o Estado lida com a violência de gênero. 

Entretanto, em 2023, o governo federal tomou algumas medidas para tentar reverter esse quadro. Foram destinados R$ 344 milhões para a criação de 40 novas Casas da Mulher Brasileira e para a retomada do programa Mulher: Viver sem Violência, que busca garantir um atendimento integral às mulheres em situação de violência. Essas ações, embora representem um avanço, não são suficientes para solucionar o problema estrutural da violência de gênero no país. O Estado brasileiro, embora tenha potencial para ser um agente de transformação, ainda carrega uma ambiguidade que prejudica a eficácia das políticas públicas. Por um lado, o governo tenta reconstruir as ações de apoio às mulheres; por outro, permanece enredado em uma cultura patriarcal que, muitas vezes, desacredita a gravidade da violência contra as mulheres e minimiza a necessidade de políticas públicas robustas e permanentes. 

O conceito de femigenocídio proposto por Rita Laura Segato, que é destacado no estudo de Meneguetti e Fonseca, oferece uma perspectiva mais ampla sobre a violência contra as mulheres, conectando-a à lógica biopolítica de Michel Foucault. De acordo com Segato, a violência contra o corpo feminino não é um fenômeno isolado, mas uma prática social e política que visa controlar, subjugar e eliminar mulheres como categoria social. Essa lógica de extermínio está profundamente enraizada em uma visão de mundo que considera as mulheres como objetos de posse e submissão. O femigenocídio, então, pode ser entendido como o extermínio de mulheres que se dá dentro de um contexto maior de violência estrutural e institucionalizada, onde os agressores não agem apenas por impulso individual, mas como parte de um movimento coletivo que sustenta o patriarcado. 

O estudo também destaca que a violência contra as mulheres, em suas diversas formas, é uma expressão de uma crise moral e social mais profunda. O ciclo de violência que resulta em feminicídios e femigenocídios é sustentado por um sistema de crenças e práticas sociais que desvalorizam as mulheres e que precisam ser urgentemente desafiados. A sociedade precisa reestruturar seus valores fundamentais, promovendo a igualdade de gênero de forma consistente e inegociável. Não se trata apenas de justiça social, mas de um direito fundamental à dignidade e à vida. As políticas públicas precisam não apenas garantir o acesso a serviços de proteção, mas também atuar de forma preventiva, buscando alterar a mentalidade cultural que perpetua a violência de gênero. 

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Autor: Maria Vitoria Alves Silva - estagiária
Edição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Freepik


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