Oralidade garantiu a sobrevivência da memória cultural negra durante a escravidão
Autor: Madson Lopes - Estagiário de Jornalismo
A transmissão de saberes, histórias e costumes por meio da fala é um dos pilares culturais de diversos povos do continente africano. Essa tradição, anterior à escrita, foi fundamental durante o período de expansão europeia para as Américas, em meados do século XVI, quando ocorreu a chegada forçada de milhões de africanos escravizados.
Esse foi o tema do primeiro episódio de “Sankofa – O Futuro é Ancestral”, série especial do programa Papo Castiço, da TV Uninter, que celebra a memória, a cultura e as práticas de afirmação da população negra em Curitiba. Exibido em 12 de novembro, o episódio mostra como a tradição oral garantiu a continuidade dos costues da população negra desde o Brasil colonial até os dias atuais.
Naquele período, milhares de pessoas que chegavam ao litoral brasileiro sofreram uma tentativa violenta de apagamento das suas memórias, como forma de garantir plena subserviência a seus senhores. Esse processo é conhecido como memoricídio, “a destruição da memória de um povo, de um lugar, de uma região, de uma cultura”, explica o historiador Marcel Malê, um dos entrevistados.
Segundo Malê, o apagamento sistemático da memória fez parte do projeto de colonização europeia, que submeteu pessoas negras a uma condição extrema de vulnerabilidade. Os escravizados perderam não apenas seus territórios de origem, sua cultura local, mas também suas identidades e subjetividades. Eles tiveram seus nomes substituídos por nomes europeus, foram forçados a aprender o português e esquecer suas línguas maternas, além de serem obrigados a abandonar suas religiões nativas — demonizadas pelos colonizadores — para se converter ao cristianismo.
Esse processo traumático começava ainda em território africano. “Antes de embarcar nos navios negreiros, eles eram obrigados a realizar um ritual de destituição cultural. Tinham que dar voltas em torno da árvore do esquecimento, lembrar o novo nome, esquecer o antigo, lembrar a nova religião, esquecer a antiga e assimilar uma nova cultura, de um povo e de uma língua que não conheciam”, explica o historiador.
Em contrapartida ao memoricídio, a oralidade surge como uma das mais importantes ferramentas e manifestação de resiliência humana. Foi por meio dela que práticas ancestrais se mantiveram vivas na diáspora. Enquanto manifestações culturais eram severamente punidas, a palavra falada circulava nos sussurros das senzalas, no cotidiano das comunidades e nos quilombos de resistência espalhados pelo Brasil.
Malê explica que, em alguns povos africanos, existe a figura do griô, um contador de histórias responsável por transmitir saberes, memórias e acordos familiares e comunitários. No Brasil, esse papel foi exercido, em grande parte, por mulheres, “como as nossas avós, como as nossas mulheres negras brasileiras escravizadas”, afirma.
“Conceição Evaristo, outra pesquisadora e escritora muito potente e dedicada a esse lugar, vai dizer que a nossa construção cultural e social é feita a partir das mães de leite. As mulheres escravizadas negras que, ao amamentarem os filhos dos senhores das casas-grandes e ao cuidarem dessas crianças brancas, transmitiam ali, através da contação de histórias, conhecimentos que foram trazidos do continente africano”, diz.
Há algum tempo, a cultura afro-brasileira vive um período de intensa produção literária, pesquisa e construção de conhecimento. São esforços da própria comunidade para contar a história a partir de suas perspectivas, criando uma epistemologia própria. Ainda assim, a oralidade segue sendo uma ferramenta essencial na busca por um futuro mais igualitário e livre das marcas deixadas pela escravidão.
Hoje, as mulheres que contam histórias são donas de si, livres da subserviência forçada, e levam suas narrativas a lugares onde a escrita ainda não alcança. Cleo Cavalcantty é uma dessas contadoras. Desde 2006, ao lado de outras duas mulheres, ela toca o projeto Girolê, iniciativa que incentiva a leitura por meio de projetos literários, contações de histórias, rodas de leitura e oficinas de formação.
Mineira, ela afirma que conta histórias para compreender sua própria condição no mundo e por acreditar no poder das narrativas na transformação de realidades. “Dentro das culturas que foram criadas em torno da oralidade, a contação de histórias é uma forma de cura. Isso não elimina todas as situações de racismo que uma pessoa negra enfrenta, mas oferece, desde cedo, mais ferramentas para reconhecer e enfrentar essas violências”, diz.
Seu trabalho demonstra que as narrativas faladas carregam uma força capaz de conectar passado e presente, garantindo a continuidade cultural entre gerações. Para ela, a oralidade é quem primeiro alcança o coração das crianças, que representam o futuro desse povo e garantem a elas outras realidades.
“Quando a gente consegue sentar de frente para uma criança ou para um adulto e falar: ‘Vem cá, eu quero te contar uma história’. Essa pessoa está entregue para aquela história, claro que isso vai mudar algo nela[…] quando a gente consegue abrir, passar esses muros, aí sim acontece o encontro, acontece a escuta, a partilha da compreensão, do assentamento da palavra dentro da gente. Aí sim é uma ferramenta de se pensar outras realidades.”
Assista à edição completa do primeiro episódio de “Sankofa – O Futuro é Ancestral” no canal da TV Uninter no YouTube. O último episódio da série destaca a importância da coletividade para a cultura negra e vai ao ar na quarta-feira (26/11) às 11h.
Autor: Madson Lopes - Estagiário de JornalismoEdição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: Reprodução Youtube



