Carolina Maria de Jesus é, antes de tudo, literatura

Autor: Madson Lopes - estagiário de jornalismo

Fonte: Instituto Moreira Salles

Em 1960, Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, desponta da favela do Canindé e se junta aos clássicos da literatura brasileira. Pelo racismo e misoginia da época, custou para a elite intelectual reconhecer a obra dessa autora como essencialmente literária. Seu diário, no entanto, ganhou o público imediatamente e viria a ser publicado em mais de 40 países. 

Por anos, Carolina sofreu nas mãos da crítica e da mídia, que tentaram reduzi-la a uma figura exótica, cujo texto trazia somente uma “forte denúncia, um relato cruel da pobreza” e outros tantos argumentos na tentativa de minar a dimensão intelectual e formação literária impressa em suas obras. 

Mas Carolina resiste ao ostracismo literário e tem sua obra fortalecida por mulheres igualmente pretas como Amanda Crispim. Doutora em Letras, ela é professora na Federal de Curitiba e autora do livro “A poesia de Carolina Maria de Jesus”. Em 17 de setembro, Amanda participou do programa Papo Castiço, da TV Uninter, e compartilhou como foi mergulhar na vida dessa escritora para além do livro que a consagrou. 

Ela defende que Carolina foi precursora da “escrevivência”, termo criado pela autora Conceição Evaristo, que diz respeito à literatura feita por mulheres pretas. Amanda explica que essa escrita, diferente de uma autoficção, aponta para um coletivo: “É uma literatura que nasce da experiência de ser uma mulher negra e periférica na sociedade brasileira […] nasce dessa experiência às vezes individual, mas escorre e se lança para a coletividade”. 

Nesse sentido, a escrevivência é um fio que liga escritoras como Carolina, Auta de Sousa e Maria Firmina dos Reis a autoras contemporâneas como Conceição Evaristo e Geni Guimarães. E segue norteando jovens pretas que sonham em se tornar escritoras. 

Esse coletivo vem ganhando espaço nos últimos anos. Mas, em 1960, Carolina estava só, ou pelo menos isolada em um lugar onde o negro só era pautado pela miséria. Ela mesma foi objeto dessa pauta. Quando seu caminho cruzou o de Audálio Dantas, que a revelaria à mídia, Carolina já possuía romances encadernados, os quais mostrou ao jornalista, que, na ocasião, optou pelos diários, considerando-os de maior relevância para sua reportagem. 

Mesmo sendo essencial para lançá-la, Amanda lembra que Carolina produziu muito mais obras que seu best-seller e experimentou textos das maneiras mais versáteis possíveis. “Carolina tem mais de 10 romances que são manuscritos ainda. Tem crônicas, cartas, contos, poemas, textos humorísticos; tem três peças teatrais que estão manuscritas; têm músicas que você consegue ouvir tranquilamente pelo YouTube”, lista. 

A dificuldade em popularizar o conjunto da obra de Carolina deve-se ao fato de ela não ser vista como uma intelectual de formação cultural sólida, algo que Amanda busca desmistificar. Ela conta que a formação de Carolina começa na infância, aos ouvidos atentos à prosa do avô, o senhor Benedito, um griô, contador de histórias. “Carolina conta de noites frias de agosto, ela criança aos pés do avô escutando, por exemplo, histórias de África, histórias do período da escravização”. 

Mais tarde, outra figura se juntaria à essa formação: Nogueira, um oficial de justiça que vivia em Sacramento, Minas Gerais, onde Carolina cresceu. Facilmente um personagem literário, o homem nutria o curioso hábito de ler em praças públicas. “Carolina e seu avô iam até ele como se fosse um compromisso diário”, conta Amanda. Ali eles ouviam em voz alta poemas, discursos políticos, textos jornalísticos, romances, entre outros gêneros que foram construindo o imaginário literário da menina. 

Somam-se a essas experiências os dois únicos anos em que ela frequentou a escola. Nesse período, foi alfabetizada e ali decidiu que seria escritora, fortemente influenciada por sua professora, dona Lanita — citada por Carolina diversas vezes. Quando teve de abandonar o colégio para viver numa fazenda, ela já tinha o aporte necessário para trabalhar o autodidatismo que exerceria ao longo da vida. 

Em sua pesquisa, Amanda descobriu que Carolina lia dicionários, Nietzsche, Sócrates, Luiz Gama, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, entre outros autores. No Canindé, toda essa bagagem transformou-se em diferentes textos, os quais, vale lembrar, não surgiram de forma espontânea, mas fizeram parte de projeto de carreira, um sonho perseguido ao longo da vida e alcançado, em parte, após a morte. 

“Ela peregrinou muito em busca de quem conseguisse entender essa genialidade. E aí as pessoas conseguem ter acesso a isso, poder ler Quarto de Despejo, Casa de Alvenaria […] e ler as poesias e O Escravo [romance publicado em 2023], a pessoa vai tendo noção de quem é Carolina, de como era seu projeto estético tão grande, tão amplo e tão diverso”, defende a pesquisadora. 

Assista à íntegra da entrevista no canal do YouTube da TV Uninter. 

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Autor: Madson Lopes - estagiário de jornalismo
Edição: Larissa Drabeski
Créditos do Fotógrafo: reprodução YouTube e Instagram @museuafrobrasil


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