Geração algoritmo: por que precisamos educar para o afeto?
Autor: *Sheron Mendes
Em um mundo cada vez mais digitalizado, é fácil encontrar crianças que deslizam o dedo sobre a tela antes mesmo de segurar um lápis. À primeira vista, isso parece sinal de “esperteza” precoce. Mas o que está por trás dessa familiaridade extrema com a tecnologia? E, mais importante: o que está sendo deixado de lado?
O excesso de tempo diante das telas tem sido apontado por neurocientistas e psicólogos como um dos principais fatores de interferência no desenvolvimento das habilidades socioemocionais, competências envolvidas no aprendizado de crianças para lidarem com frustrações, cultivar empatia, tomar decisões responsáveis e desenvolver autocontrole.
Autores como Jean Twenge e Jonathan Haidt alertam: quanto maior o tempo de exposição às redes sociais, vídeos curtos e conteúdos interativos, maior é a dificuldade das crianças em manter atenção, controlar impulsos e sustentar vínculos afetivos. É como se estivéssemos criando gerações hiperconectadas, mas emocionalmente desnutridas.
A essa carência emocional soma-se outro fator preocupante: a forma como os algoritmos organizam o que consumimos. No livro Máquina do Caos, Max Fisher (2022) denuncia como plataformas digitais, ao priorizarem conteúdos polarizadores e sensacionalistas, moldam subjetividades e comportamentos. O que antes era exceção, o mórbido, o cruel, o extremo, passa a ser exibido em sequência infinita, naturalizando discursos e ações que antes causariam repulsa.
Casos emblemáticos de jovens envolvidos em violências extremas, ou os ataques escolares mais recentes, não surgem do nada. Eles apontam para um acúmulo silencioso de negligência emocional, isolamento social e podem ter relação com a exposição prolongada a ambientes digitais que reforçam a indiferença, a desumanização e o prazer na crueldade.
Na perspectiva das funções executivas (áreas cerebrais responsáveis pelo autocontrole, memória de curto prazo e flexibilidade cognitiva), pesquisas de Adele Diamond e Philip Zelazo mostram que essas habilidades não nascem prontas: elas precisam ser desenvolvidas no corpo e na mente. Jogar bola com amigos, mediar um conflito no recreio, lidar com a frustração de perder num jogo de tabuleiro, tudo isso ensina mais sobre autocontrole do que qualquer tutorial online.
Por isso, a escola pode assumir um papel modulador diante dos impactos da cultura digital na infância. Mais do que ensinar conteúdos, os espaços educativos podem se tornar territórios de reparação afetiva e cognitiva, onde se acolhem os efeitos da vida hiperconectada e se cultivam, com intencionalidade, práticas de escuta, presença e autorregulação.
Ensinar matemática e português continua essencial. Mas ensinar a respirar fundo antes de reagir, a esperar a vez de falar ou a reconhecer as próprias emoções também é necessário, talvez mais do que nunca.
Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de reconhecer seus riscos quando usada de forma não mediada. Pequenas escolhas feitas com intencionalidade, como uma roda de conversa, uma pausa para um jogo em grupo ou um tempo ao ar livre, reconstroem o que a cultura digital fragmenta: o vínculo humano, a empatia e a consciência de si.
As habilidades socioemocionais, embora silenciosas, são estruturantes. E como toda estrutura, precisam de alicerces consistentes: vínculos humanos, ambientes seguros e mediação intencional. É hora de ensinar para o agora, com afeto, com ciência e com propósito.
*Sheron Mendes é Bióloga, especialista em Neurociência do Comportamento e professora dos cursos de pós-graduação em Educação na UNINTER.
Autor: *Sheron MendesCréditos do Fotógrafo: Pexels
