Violência contra mulher: políticas de enfrentamento e o papel do profissional da saúde

Autor: Kethlyn Saibert

A violência contra mulher, também denominada violência doméstica, é um problema complexo devido a diversos fatores e que afeta mulheres de todo o mundo. Configura-se como violência contra mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento, seja este físico, sexual ou psicológico.

Para se ter uma ideia, em 2013, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a violência contra as mulheres como “um problema de saúde global de proporções epidêmicas”, apontando que uma em cada três mulheres no mundo já vivenciou violência física ou sexual por seu parceiro íntimo. Em 2014, de acordo com dados divulgados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, o Brasil registrou um número de treze mulheres assassinadas por dia. Isso significa que, no ano em que o Brasil comemorava a Copa do Mundo, 4.757 mulheres foram vítimas de mortes por agressão.

Um levantamento mais recente, do Atlas da Violência de 2019, mostra que houve um aumento expressivo dos homicídios femininos em 2017. Com uma média de treze assassinatos por dia, totalizando 4.936 mortes, o maior número registrado desde 2007. Além disso, em 2020, durante o primeiro ano de pandemia de Covid-19, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência. A pesquisa do Datafolha mostrou que diminuiu a violência na rua e aumentaram as agressões dentro de casa, um reflexo das medidas de lockdown.

Diante desse cenário tão estarrecedor, o artigo intitulado Violência contra a mulher: consequências e políticas de enfrentamento, dos pesquisadores Alexandra Alf Gallon e Airton Adelar Mueller, busca discutir como o profissional da saúde mental pode ajudar na identificação e no combate à violência doméstica. O trabalho foi publicado na Revista Humanidades em Perspectivas, uma das nove publicações científicas da Uninter.

Os autores salientam que as causas da violência contra mulher são decorrentes de um modelo social patriarcal, onde o homem tem poder sobre a mulher. Essa relação está implícita na sociedade e é baseada na hierarquização dos papéis de gênero. Os pesquisadores citam Simone de Beauvoir, escritora, filósofa e feminista, que afirma que a discussão acerca das diferenças de gênero “nunca esteve atrelada à rigidez das diferenças biológicas entre homens e mulheres, e sim nas diferenças sociais – introjetas pela sociedade através de papéis de gênero”.

Nesse sentido, o “gênero” é um termo que compreende um sistema de relações, que transcende as diferenças biológicas alocadas a cada sexo. É um sentido cultural interpretado a partir do viés biopsicossocial, onde o biológico, o psicológico e o social se encontram em uma relação dialética na construção de masculinidade e feminilidade.

Sendo assim, no modelo patriarcal de família, o homem e a mulher precisam se diferenciar em comportamentos e emoções: “O homem sustenta a imagem de força e virilidade, assumindo assim o papel de provedor e chefe do lar; já a mulher é descrita como gentil e cuidadora, aquela que cuida dos filhos e dos afazeres doméstico, o que as tornam economicamente dependentes do marido”, enfatiza o artigo.

Para entender os tipos de violência doméstica

A Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, é um marco legal de grande conquista pelos direitos humanos das mulheres. O art. 5° da Lei diz que a violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe causa morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

É uma violência que pode ser praticada por qualquer membro da família. Geralmente os atos são cometidos por quem tem uma relação intima afetiva com as vítimas, como maridos, namorados ou ex-namorados. Confira mais sobre cada tipo de violência, segundo o art. 70 da Lei Maria da Penha:

  • Violência física – Entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.
  • Violência sexual – Entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou a participar de relação sexual não desejada, que a induza a comercializar sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo, limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
  • Violência patrimonial – Qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos da mulher, documentos pessoais, bens, valores ou direitos a recursos econômicos.
  • Violência moral – Entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
  • Violência psicológica – Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

 

De acordo com os pesquisadores, esta última vem a ser o tipo de violência mais difícil de se identificar. “Usualmente, as consequências físicas da violência doméstica são as mais perceptíveis, pois, por vezes, deixam marcas para toda vida — o que gera um maior desconforto por parte da sociedade. No entanto, as manifestações psicológicas provenientes da violência passam, frequentemente, despercebidas, pois não estão visíveis aos olhos; todavia, tais manifestações não são menos prejudiciais à mulher”, expõem Alexandra e Airton.

 

Consequências da violência psicológica

 

As mulheres que sofrem violência psicológica podem desenvolver diferentes transtornos como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) e presença de comportamentos autodestrutivos. Além disso, podem apresentar sintomas de insônia, pesadelos, irritabilidade, dificuldade de concentração e distúrbios alimentares.

“O indivíduo com TEPT oscila entre a tentativa deliberada de esquecer o fato estressor e vivenciar recordações intensas do evento; sofrem alterações negativas na cognição e no humor, pensamento negativo excessivo e persistente, além de pensamentos errôneos, buscando justificativas para o fato”, explicam os autores do artigo.

“A violência psicológica, resultante da violência doméstica, compromete a saúde mental da mulher e traz agravos como: sentimento de tristeza, desmotivação, irritabilidade, baixa autoestima, insegurança e desinteresse profissional, assim como dificuldades no relacionamento interpessoal e desgosto pela vida”, enfatizam.

 

Como identificar uma vítima de violência psicológica

 

Os pesquisadores afirmam que uma característica comum das vítimas desse tipo de violência é o sentimento de culpa. Elas acreditam que há algo de errado com elas e que isso justificaria a violência que sofreram. Além disso, alimentam a ideia de que devem cuidar dos outros, em detrimento de si próprias. “Tais pensamentos disfuncionais inferiorizam a mulher e a destitui do poder de sua própria vida”, afirmam os pesquisadores.

Vale ressaltar que quando uma mulher é vítima de violência doméstica, o seu núcleo familiar fica prejudicado. As consequências da violência comprometem diversos papéis que a mulher desempenha no dia a dia, como o de mãe, provedora, estudante e profissional. Além disso, a violência conjugal dentro do ambiente familiar afeta a saúde mental dos filhos, explica o artigo ao citar o estudo dos autores Falcke e Féres-Carneiro:

 

“Os filhos de casais violentos constroem uma visão errônea de que a violência é intrínseca aos relacionamentos e acabam reproduzindo esse padrão nas suas relações futuras; logo, sofrer ou testemunhar a violência em casa contribui para perpetuação da agressão conjugal na vida adulta”.

 

O papel do profissional da saúde

 

A partir da Lei Maria da Penha foram criadas outras estratégias para auxiliar no combate à violência de gênero, como o Plano Nacional de Políticas para as mulheres, a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher e a Política Integral à Saúde da Mulher. Os pesquisadores também destacam o programa Atenção Primária à Saúde (APS), considerada uma das ações mais importantes de atenção integral, universal e de fácil acesso às mulheres.

“APS é responsável por atentar-se para as situações de risco, nas quais as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) devem intervir, oferecendo acolhimento e escuta qualificada; assim, tais ferramentas representam um primeiro passo na recuperação da vítima”, destacam Alexandra e Airton.

Também há os Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS), que se configuram como órgãos públicos municipais destinados ao trabalho social no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com o objetivo de atender famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco por violação de direitos humanos.

Dentro dessas iniciativas, é imprescindível a presença de profissionais da saúde mental preparados para atender as vítimas de violência de gênero. É preciso treinamento para a abordagem, visto que a mulher pode apresentar certa resistência para relatar a violência que sofreu. É comum que algumas queiram amenizar a gravidade da situação, comportamento decorrente da manipulação psicológica do agressor.

“O psicólogo, quando inserido em uma equipe multiprofissional, precisa articular seus conhecimentos com os demais profissionais e instituições. É no trabalho em equipe que se formulam diagnósticos, elaboram planos terapêuticos e se estipulam estratégias de enfrentamento. Ao psicólogo, cabe o papel de problematizar a temática, com vistas a desfazer rótulos, pré-conceitos e quebra de estigmas sociais. A assistência psicológica é imprescindível, pois permite que a mulher se reestruture emocionalmente; dessa maneira, é possível enfrentar situações de crise e refletir acerca de estratégias que possibilitem um convívio mais saudável em suas relações, o que permite uma melhor qualidade de vida”, apontam.

“Ademais, diferentes profissionais dos setores públicos e privados devem estar atentos a esta causa de forma ética, bem como contribuir no enfrentamento e ruptura deste comportamento, que não pode jamais ser banalizado. O empoderamento da mulher e a promoção de sua saúde física e mental são sinônimos de desenvolvimento em toda sociedade que luta contra qualquer tipo de preconceito, opressão ou violência; por isso, a qualquer mínimo sinal de violência denuncie. Disque 100 ou 180 e notifique”, completam Alexandra e Airton.

Para saber mais sobre a Lei Maria da Penha, acesse www.institutomariadapenha.org.br.

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Autor: Kethlyn Saibert
Edição: Larissa Drabeski


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