O céu dos índios ganha uma nova estrela

Autor: Arthur Salles

Os céus aquarelados de Ponta Porã têm em Germano Bruno Afonso seu mais célebre pintor. Foi na infância que o artista-astrônomo aprendeu a desenhar as estrelas com a ponta dos dedos. As técnicas, passadas pela mãe de ascendência guarani, lograriam uma brilhante carreira na etnoastronomia, dedicada ao estudo dos costumes indígenas nas observações astronômicas.

Com estúdio montado na cidade sul-mato-grossense, num casarão de madeira que abrigava os nove filhos de Dona Conrada e Seu Ramão, Germano viu Curitiba abrir as portas para que expusesse suas primeiras obras, na década de setenta. As galerias do curso de Física na Universidade Federal do Paraná o levaram ao mestrado em Ciências Geodésicas na mesma instituição, onde tornou-se professor de imediato.

A especialização nos estudos sobre o formato e os movimentos da Terra fez com que singrasse os céus acima do Pacífico rumo à França. Astronomia de Posição e Mecânica Celeste o titulou doutor na Universidade Pierre e Marie Curie, em Paris. Os canhões franceses de laser que identificavam corpos celestes a seis mil quilômetros acima da atmosfera apontariam para o giz e o quadro negro a dez mil quilômetros que separavam os observatórios parisienses das salas de aula curitibanas.

Docente da UFPR entre 1974 e 2003, foi também o primeiro coordenador do programa de pós-graduação em Física da universidade, criado em 1984. A atuação no departamento de ciências exatas fazia Germano percorrer o estado quando um teimoso fragmento decidia trocar o anil do espaço pelo púrpura da terra.

— Acaba o mistério sobre os objetos que caíram do espaço há dois meses no interior do Paraná — anunciava Sérgio Chapelin numa edição do Jornal Nacional, em 1990, que exibia Germano a explicar as origens do meteorito que incendiara 20 metros quadrados das lavouras de Pato Branco.

A viagem ao sudoeste paranaense traria a maior descoberta da vida do pesquisador. O caminho de volta era comandado pelo colega Carlos Aurélio Nadal, que decidiu trocar a BR-277 pela 373. Em vez de Curitiba, a parada seria feita em Guarapuava. Era aniversário do patriarca Nadal, e o filho quis participar da celebração. Emburrado, Germano não tinha o que fazer senão aceitar a passagem pela terra da cevada. A paciência que lhe era característica despendia não mais que pequenos protestos para que o meteorito fosse imediatamente analisado na capital.

Os grandes olhos negros, infantes e fascinados, feito o breu das imensas noites vazias, eram geralmente iluminados pelo brilho dos céus. Naquela estadia de sexta-feira, que deveria durar poucas horas e acabaria por se estender até terça, fora a alvura da irmã de Carlos a causa do clarão que o acompanharia por 31 anos.

Professora de Biologia na rede estadual de educação, Thaisa permanecia na cidade à espera de um príncipe montado em um cavalo branco. Quando Germano apeou de uma Kombi, não havia desapontamento que pudesse ofuscar a grandeza do cientista. Apesar de seu 1,84m de altura, era a alma intensa e desbravadora que fazia dele o centro gravitacional de Thaisa.

A cerimônia de união, no ano seguinte, foi discreta e limitada à participação da família Nadal. Germano estava de volta à França, agora acompanhado por uma igual entusiasta da astronomia. Lá, a companheira apresentou seu trabalho de especialização na área, um jardim astronômico que no futuro pousaria no campus Divina da Uninter, em Curitiba.

O doutor agora prestava o pós-doutorado no Observatório Côte d’Azur, nos Alpes Marítimos. Os quase 1,5 mil metros de elevação faziam do alto de Nice o portal entre terra e céu do casal. As lágrimas de São Lourenço que escorrem do céu todo agosto inundavam os aficionados do plateau de Caussols naquela noite de verão em 1994, em especial o par enrolado em confidências e cobertores no para-brisa de um Opel Ascona alvo. O país europeu voltaria a ser destino de Germano outras vezes, a trabalho ou estudo, mas foi nas entranhas do Brasil que fez por merecer a alcunha de Xamã.

Os índios do Brasil

Desenharam lá no céu

Mais de 100 constelações

De volta ao Brasil, Germano pôs-se a investigar a fundo as constelações indígenas que aprendera quando criança. A relação delas com o cotidiano dos índios o intrigava. Agricultura, caça, pesca e clima eram algumas das práticas definidas nas aldeias a partir da observação das estrelas.

O frade francês Claude d’Abbeville chegou ao Maranhão em 1612. Estudioso de insetos e do meio ambiente, o capuchinho passou quatro meses entre os hoje extintos tupinambás, próximo à linha do Equador. Os mitos e as denominações atribuídas pelos nativos aos céus permitiram ao religioso a catalogação de cerca de 30 estrelas e constelações.

Quase 400 anos depois, a mais de três mil quilômetros e derivado de outra língua, Germano percebeu que o sistema astronômico dos guaranis do Sul do país era muito semelhante ao que fora registrado pela expedição francesa no Nordeste brasileiro.

Numa empreitada ainda maior que a do frei, o professor decidiu atravessar todas as regiões do Brasil em busca do conhecimento que as diferentes aldeias tupi-guarani detinham sobre os astros.

Dez anos

Conversando com os índios

Sobre o céu

E as estrelas do Brasil

— Se eu for embora, você cuida do meu filho — pediam os 18 compadres que Germano conquistou em suas andanças. Fruto da fronteira com o Paraguai, tez castanha, cabelos negros cerrados, falante do nheengatu, o astrônomo somente adentrava as construções de sapé com a confiança dos moradores. Dos pajés, acumulou diferentes colares após os rituais de aceitação nas aldeias. Dos tembés, do Pará, foi novamente batizado: Zoe, “A Primeira Estrela da Manhã”.

O amálgama cultural do qual nasceu e depois fermentou fez de Germano grande defensor da multiculturalidade entre os povos e a igualdade desses diante da sociedade. Quando se embrenhava de Norte a Sul a bordo do Ali, furgão azul como a abóbada das nuvens, carregava numa carreta de 12 metros oito gomos de fibra de vidro. Três mil parafusos encaixados e estava montado o planetário que exibia pra lá e pra cá, em escolas e aldeias, difundindo o conhecimento milenar dos índios. Confeccionava e distribuía cartilhas aos povos locais com o intuito de resgatar e preservar a memória nativa.

Com as mesmas mãos planas, erigira observatórios solares na preocupação de tornar os indígenas donos de sua própria história. Mil quilômetros acima do Rio Negro desembocaram-no em São Gabriel da Cachoeira. A cidade amazonense, fronteiriça com a Colômbia e a Venezuela, comporta 23 etnias indígenas, constituindo mais de 75% de sua população. Diz-se que à risca do Equador, durante a inauguração do equipamento, os céus decidiram abençoar a construção; não na forma de pontos luminosos dependurados, mas no bater de asas de uma revoada de pássaros jamais vista antes ou depois no local.

De tanto olhar e pensar

Os índios aprenderam

Que o céu e a terra

Estão ligados

— Tudo que está no céu está aqui na terra também — apregoava o professor. Germano tocava a vida terrena com sonhos mais ideais que práticos. Seu grande objetivo era educar, criar pontes, democratizar o acesso e o ensino a todos. Acumulava prêmios e menções honrosas, entre eles o Jabuti de melhor livro didático, Prêmio Ciência e Tecnologia do Paraná e o reconhecimento da Assembleia Legislativa do Paraná devido à sua contribuição com a educação no estado.

Sua simplicidade de berço, no entanto, não o permitia esbanjar as conquistas e titulações. Tinha dois grandes orgulhos próprios em vida: a foto do ex-aluno e físico Rodrigo Guerra da constelação do Homem Velho, inspirada nas pesquisas do professor e publicada como a “foto astronômica do dia” pela Nasa, em janeiro de 2021; e a música O Céu dos Índios, composta pelo músico paulistano Hélio Ziskind em 2006 para o extinto programa da TV Cultura Cocoricó.

A canção, regravada depois para o canal do compositor no YouTube, surgiu quando Ziskind procurava conteúdo para um episódio dedicado às constelações indígenas. Deparou-se com um artigo de Germano para a revista Scientific American Brasil, em que o pesquisador apresentava um resumo de seus estudos sobre a ligação dos astros com os costumes dos índios. Numa noite de insônia, dez anos depois, o musicista decide procurar alguma forma de contato com o professor. A comunhão entre conhecimento e aventura era dividida entre ambos, que projetavam parcerias para a fim de estimular o interesse pela cultura indígena entre os jovens, índios e não índios. Os céus guardavam outros planos para Germano.

Professor Afonso

Que história mais bonita

Que o senhor descobriu

O Germano astrônomo e doutor era também pai e amigo. Anahi e Yuri, de seu primeiro casamento nos anos 1970, e Thayara (“Filha do Céu”, nome presenteado por um dos pajés que acolhera o pesquisador durante suas expedições), do amor com Thaisa, compartilhavam com o pai o espírito inquieto e ansioso pelo saber. Trajando seu casaco bege Pierre Cardin, suas calças escuras e seus sapatênis cor de borracha, estava disposto a qualquer compromisso, sobretudo os que o rodeavam das pessoas que mais gostava.

— Hoje vamos todos pro Alemão — exclamava, com a voz gutural habituada a oito línguas e que frequentemente engolia o pé das vogais, aos colegas e alunos para que se dirigissem da sede do Programa de Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias da Uninter, no campus Divina, em direção ao conhecido bar no início do Largo da Ordem da capital. A convocação não tinha periodicidade definida, mas, das apostas que ganhava entre os amigos, cobrava diariamente seus chopes submarino no referido local.

— Ninguém vai ficar me devendo submarino.

Didático em suas explicações, valia-se da agrafia indígena para construir exemplos concretos e facilmente visualizáveis, dentro e fora das salas de aula. Andava a todo lado com um caixote, que servia como depósito de anotações, documentos e quaisquer papeladas que ele ou seus colegas professores precisassem escamotear das vistas do monitoramento 5S.

Tal qual o significado de Zoe, Germano alçou o teto da redoma úmida e metálica que cobria o amanhecer de 26 de agosto de 2021 em Curitiba. “Uma estrela que o universo decidiu vestir de homem”, como definiria Thaisa dias após o falecimento do marido, decidiu ser o primeiro astro a brilhar às 7h40 da manhã. Os iluminados 71 anos em que atravessou a superfície terrestre continuarão a brilhar por incontáveis estações ao lado dos seres que estudou por toda vida, afinal, tudo que está no céu está aqui na terra também.

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Autor: Arthur Salles
Edição: Mauri König


1 thought on “O céu dos índios ganha uma nova estrela

  1. Recebi uma mensagem via whatsapp: “Lindo artigo sobre o meu tio.”
    Minha resposta após ler: “Não se trata de um artigo, é um verdadeiro Poema!”
    Parabéns ao autor Arthur Salles e ao editor Mauri König.
    Linda homenagem.
    Mais uma grande perda ao Brasil e ao mundo que deve ser creditada a cada um que apertou 17 nas urnas e elegeu este genocida.
    A COVID-19 nunca foi uma gripezinha.

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